Diversão e Arte

Crônica - Bandeira branca

Paulo Pestana, Especial para o Correio
postado em 24/02/2017 17:01
Amanhã, em vez de chá com torradas, era dia de sair por aí tomando Parati; de perder o sossego com a mulata assanhada, perguntar qual é o pente que penteia a nega do cabelo duro, gritar que o índio quer apito, que a Maria, de noite, é João. E finalmente saber se o Zezé é ou não é e dizer que pode faltar tudo, menos a danada da cachaça. Não pode mais. Se alguém da turma mais velha pedir à banda para lembrar que mulher de verdade era Amélia, pode levar uma Maria da Penha pela nuca, se disser ;não me leve a mal; e que ;vou beijar-te agora;, pode ser preso por assédio sexual. E, se cantar que é da ;Turma do Funil, onde todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto;, pode dar confusão.
O carnaval se desenvolveu como uma válvula de escape para a realidade de uma sociedade em que princípios morais tinham valor. Em Camisa listrada, Assis Valente fez o retrato do homem de família respeitável que se transforma para sair no Bola Preta, fantasiado de Antonieta. Este ano não vai ser igual àquele que passou.
Não mesmo. A licenciosidade permitida apenas no que foi chamado de tríduo momesco ; você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira ; hoje acontece nos 365 dias (e noites) do ano; os chamados direitos individuais atropelaram a vida coletiva; o eu venceu o nós. Os direitos vêm acima dos deveres.
De novo, estamos diante da falsa polêmica das velhas marchinhas de carnaval, consequência da organização dos blocos de sujo ; eram assim chamadas as aglomerações espontâneas antes de virarem lucrativo negócio ; e da oficialização da manifestação popular. Os idiotas venceram e organizaram a folia.
De repente, cantar que ;a mulata bossa-nova caiu no hully gully; não pode mais, não por culpa do nonsense da frase, mas por causa do vernáculo. O debate etimológico lembra que mulata vem de mula, animal nascido do cruzamento de jumento e égua; mas é um argumento pobre. Palavras evoluem, ganham novas personalidades com o tempo; não fosse assim, cada vez que alguém for chamado de rapaz pode se sentir ofendido, porque, na origem, rapaz vem de rapina, rapto ; ladroagem, portanto.
Em 1930, Ary Barroso já era um monstro sagrado quando escreveu e Francisco Alves era ainda maior quando gravou Dá Nela. A letra, gaiatamente, incentiva a descer bordoada numa mulher. Não consta que aumentaram as ocorrências de agressão às mulheres; talvez porque covardes não precisem de incentivo.
A letra de O teu cabelo não nega ; que aliás não é de Lamartine Babo, responsável apenas pela adaptação de um frevo dos irmãos Valença, transformado em marchinha por Pixinguinha (sem créditos) ; é francamente racista. Não cabe discussão. Mas é o retrato de uma época. E quem é racista não precisa de marchinha para aumentar o grau de imbecilidade.
A única coisa certa é que essa sanha corretora é desculpa perfeita para que fundamentalistas travestidos de foliões acabem de vez com o carnaval. Tomara que não proíbam Bandeira branca.

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