Diversão e Arte

Pesquisador reúne em livro correspondências de Murilo Rubião e Otto Lara

São mais de 40 anos de diálogos entre cartas, bilhetes e telegramas

Pablo Pires Fernandes
postado em 25/02/2017 07:33

Murilo Rubião: a amizade com Otto Lara Resende foi um encontro de angústia e solidariedade

Alfredo se transformou em dromedário. Não conseguia conviver com seus semelhantes e partiu sem rumo certo sobre as quatro patas. Alfredo é o personagem que dá título a um dos contos do primeiro livro publicado por Murilo Rubião (1916-1991). E é o nome usado pelo autor de O ex-mágico para se referir ao amigo Otto Lara Resende (1922-1992) na correspondência trocada entre eles. Nesse diálogo de cartas, bilhetes e telegramas, Otto também se dirige ao colega chamando-o pelo nome do personagem. Assim foi estabelecido o Sindicato do Alfredo.

A hipotética entidade é apenas uma das brincadeiras que emerge das cartas escritas de um para o outro entre 1945 e 1991, inéditas e, agora, reunidas pelo pesquisador Cleber Araújo Cabral em Mares interiores: correspondência de Murilo Rubião e Otto Lara Resende, publicado pelas editoras Autêntica e UFMG. O conjunto é definido por Cabral como ;instantâneos autobiográficos;, mas que transcende o viés pessoal por carregar discussões literárias e registros de época.

A obra é dividida em três partes: de 1945 a 1952, com Otto vivendo no Rio de Janeiro e Murilo ainda residindo na capital mineira (57 cartas); de 1957 a 1959, quando o primeiro vivia em Bruxelas e o segundo em Madri (18 cartas); e de 1966 a 1991, período em que Otto mora em Lisboa e volta ao Rio, e Murilo regressa definitivamente a Belo Horizonte (20 cartas).

;O tom das fases muda. A primeira é mais íntima, reflete confidências e traz até certo romantismo, com conflitos e pequenas angústias do cotidiano;, explica Cabral, notando que ambos, jovens jornalistas, já eram bons amigos quando começam a troca de cartas. ;Depois, eram escritores canonizados e reconhecidos e as angústias são outras.;

Apesar de ser um entre tantos aspectos ; que o organizador chama de ;geografia interior; ;, o tal Sindicato do Alfredo pode ser uma boa maneira ; entre as infinitas ; de explorar a cumplicidade e a melancolia, a amizade e a angústia. São esses os dois traços mais notáveis e recorrentes de toda a correspondência. Não por acaso, o Alfredo do conto transpira fidelidade e tragédia. ;Essa sensação de melancolia e desamparo é elemento comum tanto na correspondência, que explicita a personalidade de ambos, como na obra dos dois autores mineiros;, aponta Cabral.

;Verifico, a cada momento, a minha inaptidão para o ofício de viver. Sei que você me compreende, velho Otto. Somos dois desamparados;, escreve Murilo em setembro de 1948. Uma semana depois, Otto responde demonstrando absoluta sintonia com o sentimento do amigo: ;Duro ofício, este de viver. Vivo a dizer que não me sinto apto para ele, que o ignoro, que não sei por onde começar. Quanto a mim, minha verdadeira vocação é a morte;. E acrescenta que ;desamparo não tem cura, tem paliativos;. Ao que, posteriormente, Murilo complementa: ;Sim, a literatura não cura, é paliativo;.

Cabral relaciona essa melancolia a um tipo de olhar sobre o país e o mundo, bem definido por Paulo Prado em seu clássico Retrato do Brasil (1928), no qual aponta a tristeza, o romantismo, a luxúria e o vício da imitação de modelos exteriores como elementos que expressam o sentimento do intelectual brasileiro. ;A sensação de angústia e desamparo entre os escritores, no período entre guerras e durante a Era Vargas, essa crise e incerteza são noções muito interessantes e que podem servir para se pensar a atualidade;, defende o pesquisador e doutor em estudos literários pela UFMG.

Nas missivas, não faltam confissões de ordem íntima. Em épocas distintas, Murilo discorre sobre suas decepções amorosas: ;Também não estou amando nem sendo amado. É uma coisa esquisita, não sei explicar, não me entendo, não entendo o amor, não entendo o meu peixe manso. O mistério somente será explicado quando surgirem as ilhas estacionárias;.

Atormentado

Otto, por sua vez, chega a recorrer ao amigo, então funcionário do governo de Minas, para pedir ajuda na colocação do irmão em um emprego. E, atormentado, lamenta de problemas financeiros: ;Estou, assim, entregue aos braços da hidra capitalista, já com outra letra vencida, mergulhado num mar de dívidas, eu, que nunca soube nadar nem em felicidade!”.

A correspondência revela ainda um aspecto literário importante. É constante a troca de ideias, opiniões e conselhos. Apesar de incentivar a qualidade literária de Otto, Murilo pouco se expressa a respeito da obra do amigo. O autor de O braço direito, no entanto, exerce com rigor a análise das primeiras versões dos contos do companheiro. ;Tem umas quatro cartas em que Otto faz uma crítica muito minuciosa dos textos do Murilo, mas há certa dificuldade de dar a expressão exata ao pensamento e receio de intervir no trabalho de composição do autor;, observa o organizador.

Embora diga que ;não é crítica, são umas notinhas à margem, sem importância;, Otto, de posse dos originais, destrincha a obra-prima Teleco, o coelhinho, fazendo uma série de sugestões ; supressão de frases, troca de adjetivos ou correções gramaticais. Todas elas, sem exceção, foram acatadas por Murilo na versão publicada do conto ; já que o mestre do realismo fantástico retocou seus textos até o fim da vida. ;São dois inseguros escrevendo, cheio de dedos, sobre a escrita do amigo;, comenta Cabral, acrescentando que, em comum, tinham o pai professor de língua portuguesa e a formação católica.

Qualquer leitor que se debruçar sobre a correspondência de Murilo e Otto vai notar a franqueza e a cumplicidade nas palavras e no trato entre a dupla. Cabral aponta para as cartas como possível ;registro da política da amizade na literatura brasileira;. Sempre implícito, o sentimento de amizade é enaltecido em algumas passagens. ;Somente os amigos existirão;, escreve um triste e jovem Murilo Rubião. Otto, em outro momento, exalta: ;Pois chover no molhado é renovar os protestos da minha velha e fiel amizade;. Mares interiores é uma peça repleta de afeto e solidariedade, de troca e cumplicidade que só existem entre amigos verdadeiros. Além do grande valor literário, a obra é uma ode à amizade.


Palavras de angústia

;Aqui, velho amigo, sobraçando uma solidão irreparável, aguarda-me melancólico destino.
O casamento, o desespero ou qualquer forma benigna de suicídio. O que mais me inferniza, me arrebenta, é contaminar esta cidade com a minha tortura.;
(M.R., BH, 8/9/1948)

;Pela vida afora, vamos amarrando cadáveres a nós mesmos, criando monstros a leite. Chegará o dia de sermos devorados. Adiamos essa devora com o vômito literário. Escrevemos para não sermos devorados.;
(O.L.R., RJ, 30/9/1948)

;Nunca esbugalhei tanto os olhos, jamais fiz tantas perguntas. Um homem sem infância, atolado em meia dúzia de ideiazinhas estéreis, assustou-se com a vida. Não sabe chorar, não conhece uma oração.;
(M.R., BH, 7/2/1949)

;Bem: você sabe que estimo a solidão, como dizem os poetas. Sei que você também a estima, esta austera senhora. Morando juntos, só temos que não perturbar as nossas respectivas solidões.;
(O.L.R, RJ, 16/5/1949)

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