Diversão e Arte

Dois livros salvam os grafites com registros poéticos sobre a arte das ruas

Arte efêmera e praticada nas ruas ganha registro que pode virar documento histórico

Rebeca Oliveira
postado em 05/04/2017 07:30

Espaços de Brasília ganham nova vida com ação dos artistas de rua. Mas as intervenções precisam ser autorizadas

Em galerias, obras de arte recebem tratamento VIP. A temperatura correta impede que o clima degrade as telas. O acesso ao público, controlado em menor ou maior grau, as deixam longe da ação de vândalos. Do outro lado, a arte urbana está à mercê de toda sorte de intempérie. Basta relembrar o que aconteceu em São Paulo. O prefeito João Dória apagou uma série de murais, alguns com décadas de existência e, com as quais, parte da população mantinha relação de afeto. Mesmo atitudes menos radicais têm certa interferência.

Para tornar eterno o que é efêmero por essência, dois livros chegam ao mercado. São registros fotográficos e textuais que ;salvam; os grafites e os redimem da má fama que ainda possa existir. Grafite é cultura e, como tal, merece ser documentado. No dia 23, a galeria Urban Arts receberá o lançamento de Entre cores e utopias: o grafite em Brasília e seus arredores, das brasilienses Renata Almendra e Juliana Torres. Textos curtos de análise crítica e histórica se unem a 120 imagens de artes distribuídas em todo o Distrito Federal.

Cidade tombada como patrimônio histórico da humanidade, Brasília acompanha a tendência de grandes metrópoles e começa a cultivar uma cena de artistas urbanos. ;Não é um livro sobre os artistas, mas das obras dentro do contexto urbano. Reconhecendo que é uma arte publica, há até quem se esconda no anonimato;, conta Renata sobre o primeiro título da editora Letreria.

Renata destaca que a disposição para escrever a obra nasceu em viagem a Bogotá. Na capital colombiana, a arte urbana é vista sob outra perspectiva. O apoio governamental permite que hajam, por exemplo, excursões turísticas para conhecer as principais obras. ;A cidade ganha uma nova dinâmica quando recebe essas intervenções. Brasília é nova e está formando essa identidade cultural. Queríamos registrar essa força identitária que está nascendo agora;, complementa.

Arquivo vivo

Daniel Toys é um dos artistas urbanos que têm obras documentadas pela dupla na publicação. Além disso, o brasiliense tem um arquivo pessoal ; e sempre em curso ; com imagens de todos os trabalhos de rua que levam sua assinatura. Afinal, a rua é a galeria de arte desses profissionais.

;Sei que dentro de alguns minutos alguém pode sujar ou apagar meu trabalho. A foto, para nós, vale muito. Gosto de fazer o grafite e ver a reação da cidade em cima dele. Na foto que eu tiro, tento capturar a essência de pessoas passando por perto, interagindo. Tento criar algo que converse com aquele ambiente;, conta Daniel. Ele não está sozinho no processo de registro. Por mais que tenha se especializado em fotografia, conta com apoio de nomes como Bruno Aguiar e Daniel Oliveira, dois fotógrafos com os quais faz parcerias.

Duas perguntas / Gabriela Longman
Grafite é arte e também instrumento político, que pode contestar da especulação imobiliária a características de um povo. Isso fica posto na obra, de alguma maneira?

O tempo inteiro. Desde seu surgimento, nos EUA dos anos 1970, o grafite é uma espécie de grito contra certas convenções que regem o espaço urbano e a estrutura social. Hoje, uma das coisas que chama atenção é sua capacidade de colorir bairros ditos ;degradados; e, mais adiante, ser expulso graças à valorização e transformação dessas mesmas zonas via especulação imobiliária. Esse movimento faz parte de dinâmicas urbanas complexas que desafiam gestores, urbanistas, articuladores de políticas públicas e os próprios artistas nas três cidades. O livro não oferece respostas prontas, mas tenta dar uma dimensão desse fenômeno.

Embora Nova York e Berlim tenham medidas governamentais que restringem a pintura urbana a locais pré-determinados, ela é vista como uma forma de promoção turística. Ainda falta esse entendimento no Brasil?
Esse entendimento começou. Hoje, você passa pela Vila Madalena e existem placas marrons ; usadas para indicar atrativos turísticos ; sinalizando o beco do Batman e algumas empresas começaram a oferecer tours especializados. O problema é que, muitas vezes, o grafite é tirado de seu contexto. A força do grafite mora, em grande medida, no seu diálogo com a vida e com a dinâmica das ruas.

DEPOIMENTO
Arte registrada

;Acredito que a relação do artista urbano com a rua seja um caso passional. Uma das maiores tônicas dessa paixão é a sua efemeridade. A rua, nem subjugada nem domesticada, é a galeria de arte por excelência. Ainda assim, sua dinâmica caótica e vulnerável, não permite que o trabalho artístico perdure. Hoje, muitos artistas urbanos mundialmente conhecidos só o são, porque seus grafites foram registrados através da fotografia e dos celulares. Sem a popularidade do registro fotográfico, muito de tudo aquilo que se produz na rua seria perdido.;

Pedro Sangeon, ilustrador, artista urbano, e criador do personagem Gurulino
Entre cores e utopias: o grafite em Brasília e seus arredores

São Paulo, Nova York, Berlim...


Arte urbana de São Paulo, de Nova York e de Berlim se encontram com o olhar preciso do fotógrafo Eduardo Longman e da jornalista e mestre em arte Gabriela Longman. Pai e filha trabalham no projeto desde 2014, antes da polêmica tomar conta das ruas paulistanas, uma das cidades destacadas no ensaio. O livro Grafite ; Labirintos do olhar foi lançado este mês e tem como marca percursos pelas grandes capitais.


A observação, a reflexão e a pesquisa falaram mais alto que as inclinações pessoais dos artistas. O objetivo é uma leitura imparcial do fenômeno contemporâneo. ;Nem no céu nem no inferno;, explica Gabriela na introdução.


;A fotografia não muda o caráter de impermanência do grafite, mas certamente abre a porta para que ele não se apague, se apresente de outra forma e passe a existir nesse universo de imagens que é nossa memória;, conta Eduardo Longman.
Para o profissional, na guerra entre o grafite visto como vandalismo e o encarado como arte urbana, há partidários de todos os lados. ;O fato é que o grafite nunca antes conquistou tantos adeptos nem fez de todos os continentes o seu território. E assim como ganhou espaço e aceitação, com seus autores presentes nos museus internacionais, incorporados ao mercado de arte e até participando de projetos ligados ao poder publico;, diz.


;Muitas vezes preferimos imagens que enfatizam o diálogo entre os murais e as características de cada uma das três cidades ; telhados, viadutos, prédios, escadarias, fiação, vegetação. Nesse apanhado há uma mistura entre artistas anônimos e outros mundialmente conhecidos;, complementa Gabriela Longman.

De Renata Almendra e Juliana Torres.
Letreria, 120 páginas. Preço: R$ 50



Grafite ; Labirintos do olhar
De Eduardo Longman e Gabriela Longman. BEI Editora, 182 páginas. Preço: R$ 60

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