Diversão e Arte

Leandra Leal fala sobre a coragem das primeiras artistas travestis do país

Atriz e diretora lança filme sobre geração que protagonizou a resistência artística

Igor Silveira
postado em 28/06/2017 07:30

Divinas Divas recupera uma parte da história do cinema brasileiro

Em março de 1934, uma quinta-feira marcou para sempre a história da cultura brasileira. O Teatro Rival, construído na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, recebia o público pela primeira vez, com a deslumbrante Dulcina de Moraes em cena. A atriz, escritora, produtora e diretora Leandra Leal só nasceria quase 50 anos depois. Sua importância para o local de resistência artística, no entanto, não está aquém dos grandes astros e estrelas (do teatro e da música) que frequentaram e frequentam o Rival. Não só por administrar o espaço com a família desde a década de 1990, mas também por resgatar e divulgar a memória e o talento da primeira geração de artistas travestis do país ao dirigir o documentário Divinas Divas. Hoje, ela estará na sessão das 19h do filme, no Cine Brasília (EQS 106/107), para um bate-papo com o público. Em entrevista ao Correio, Leandra Leal falou da coragem desse grupo, da importância do Rival, de política e de maternidade, experiência que vive há quase dois anos, quando adotou a filha, Júlia.

Como você avalia o trabalho dessas artistas retratadas em Divinas divas?
Elas fazem parte de uma geração mais politizada, com uma posição ideológica e uma atitude política, comportamental... E isso acabou abrindo portas para toda uma geração e para uma discussão de gêneros. Elas começaram durante a ditadura, em um momento em que era proibido um homem estar na rua vestido de mulher. Em cena, era permitido. Havia censura dos espetáculos, claro, mas em cena era permitido. É muito contraditório que, atualmente, todas as liberdades individuais que foram conquistadas por elas, de estarem na rua, do nome social etc., e mesmo assim, elas terem menos espaço para se apresentar. A sociedade encaretou! A gente assiste ao crescimento de uma onda conservadora, que diminui o espaço para essas artistas. Porque o país é o que mais mata trans no mundo. Então, a gente está em um momento de preconceito exacerbado, de ódio.

E a importância do filme nesse sentido?
O filme entrou em um momento em que não é só o Brasil que está passando por esse movimento conservador, é uma onda que está acontecendo no mundo. Ele está sendo recebido nos Estados Unidos com muito: ;Olha! Vocês também passam por isso;. Mas acho que hoje o filme tem um olhar muito íntimo com as artistas, no sentido de que eu vivi com elas, com todas as complexidades que as pessoas têm, sem estereótipo. Não é um filme sobre travesti, não é uma obra antropológica. É um filme sobre essas pessoas com quem eu vivo, que eu admiro, desde sempre. E eu procuro mostrá-las com toda a complexidade que elas têm, como solidão, reflexões sobre o envelhecer, desilusões amorosas. Isso eu acho que cria identificação no público. O filme começa com contexto histórico, mas, depois, quando ele vai entrando no contexto humano, acho que as pessoas vão se identificando.

Quais são suas primeiras lembranças dessas artistas?
Eu lembro delas assim: de frequentar o Rival, de espetáculos. Não tenho a memória exata do que era. Tem uma memória bem clara, que é a da Rogéria pegando na minha bochecha, falando da Scarlett O;Hara. Olha, eu sou muito feliz sendo atriz. Mas dirigi esse filme por causa do lugar onde eu estou em relação a elas. Acho que realmente só eu tenho essa posição, porque eu estava ali o tempo todo.

Quais os maiores desafios e os maiores prazeres em se administrar um teatro como o Rival?
É um prazer, sim, mas é muita dificuldade. Desde outubro, a gente está penando muito por conta da crise, da insegurança... A gente sofre muitas variantes no teatro. As pessoas não se sentem muito seguras para sair às ruas, e olha que a Cinelândia melhorou muito! Na época em que a minha mãe administrava o Rival era muito mais complicado. Mas o momento atual não favorece. A gente tenta tornar a rua mais movimentada, com espetáculos de graça, para atrair o público, para movimentar mesmo. Gente na rua é o que traz segurança, cultura, tudo. Mas é muito difícil administrar isso. Às vezes, eu me pergunto se eu sou a pessoa certa para estar no comando de tudo isso, porque eu sou uma atriz, mas eu tenho a consciência de que o Rival é maior do que isso, que está na minha família há muitos anos.

Qual sua opinião sobre a situação política atual?
Eu acredito que a crise institucional em que a gente está só vai acabar quando houver eleições diretas. Por mais que não esteja prevista na Constituição, é uma coisa necessária para pensar neste momento. Acho que agora não existe o ;votei em fulano, votei em sicrano;. É preciso se unir em torno de um projeto de reconstituição, e isso passa por a gente decidir, por a gente votar.

É mais provável que uma eleição indireta aconteça...
Quem você acha que será eleito indiretamente? Isso não existe! Pessoas que estão em várias delações. A eleição indireta com esse Congresso, todo envolvido em um esquema político corrupto! Não dá para a gente confiar em eleição indireta, que será um processo limpo. A gente corre o risco de muita coisa em uma eleição direta, mas acho que só essa movimentação já obriga as pessoas a se posicionarem.

O que você acha sobre a arte como forma de resistência?
O carnaval é nossa cultura e acho que é uma festa democrática, sou apaixonada por isso. Mas acho que, em relação à resistência, eu falo muito do Divinas. Penso que é minha contribuição ; minha, da equipe, de todo mundo que está envolvido ; contra essa onda conservadora.

Você está sempre envolvida em diversos projetos. Como isso reflete na sua vida?
E olha que eu nem estou trabalhando como atriz agora! Estou lançando o filme que dirigi e continuo com outros em que atuei em cartaz. Teve, recentemente, O rastro, com uma pegada mais de thriller, de terror. Mas é isso, a vida é meio assim: às vezes, tudo acontece ao mesmo tempo.

O que você poderia falar sobre a adoção no país?
Tem uma única forma de a pessoa ser mãe ou pai: que é amando. Como você será (biológico ou adotado) não interessa. O que importa para você ser mãe ou pai é amando e educando, é dedicando tempo. No Brasil, as leis sobre essa questão são boas, mas, como qualquer lei brasileira, tem dificuldade de ser aplicada, principalmente, por conta de burocracia, falta de recurso, pouca gente. Mas penso que a adoção no Brasil tem se tornado um tema mais discutido, mais falado. Quando entrei na fila (para adotar uma criança), há 4 anos, era uma outra coisa. Agora, vejo que já mudou. Para mim, pessoalmente, é superbacana perceber que é um assunto discutido, que minha filha não enfrentará os preconceitos que antigamente existiam. Porém, ainda existe uma disparidade grande entre o perfil e a realidade das crianças que são abrigadas.



Divinas divas

Sessão do filme com a presença da diretora, Leandra Leal. Hoje, às 19h, no Cine Brasília (EQS 106/107). Ingressos a R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada).

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