Diversão e Arte

Conheça Diva Guimarães, professora de 77 anos que se tornou símbolo da Flip

A professora emocionou Lázaro Ramos e toda a plateia ao relatar sua dolorosa trajetória para vencer os preconceitos por ser neta de escravos

Márcia Maria Cruz/Estado de Minas
postado em 30/07/2017 18:11
Em Paraty, Diva Guimarães esteve com a escritora mineira Conceição Evaristo, que a presenteou com três livros
Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em que o ator-escritor Lázaro Ramos era cotado para o posto de estrela da 15; edição, o brilho foi de senhora de 77 anos de fala pausada e jeito tímido vinda do interior do Paraná. Quando ela pegou o microfone e, com a voz embargada começou a contar sua história, estava falando por um povo. A fala represada ;por anos; de dona Diva Guimarães encontrou ressonância de quem estava na tenda da Flipinha às margens do rio, mas de tão forte extrapolou os limites da cidade histórica, ganhou empatia por todo o Brasil amplificada pela rede.

O testemunho da professora nascida no interior do Paraná, mas radicada em Curitiba, fez com que todas as atenções e holofotes se voltassem para ela, que mais do que qualquer escritor ou escritora convidada passou a ser reconhecida e parada nas ruas do Centro Histórico para tirar selfies. ;Estou me sentindo assustadíssima. Não foi algo pensado, como sou tímida se tivesse pensado não pegaria o microfone;, afirmou.

Por onde passa, é anunciada como celebridade e não foi diferente, ontem à tarde, durante o lançamento do catálogo Intelectuais Negras Visíveis, organizado pela professora Giovana Xavier, que reuniu mulheres negras de todas as idades na Casa Amado e Saramago.

Na sexta-feira, depois das falas do ator Lázaro Ramos e a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques na mesa ;A Pele que habito;, Diva da plateia falou por 13 minutos, fala gravada na íntegra pela organização da Flip e viralizou na Web. Até o momento foram mais de 222 mil compartilhamentos, o que representa cerca de 7,5 milhões de visualizações.

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No mesmo dia se encontrou com Lázaro e, na manhã de ontem, na Pousada do Ouro, esteve com a escritora mineira Conceição Evaristo que fará hoje às 12h a mesa de encerramento ;As Amadas; com a outra escritora mineira Ana Maria Gonçalves ; declaradamente fã de Conceição e Ana, Lázaro estará na plateia.

[SAIBAMAIS]O encontro aconteceu no momento que Conceição concedia entrevista ao Estado de Minas e foi registrado ao vivo. As duas se abraçaram longamente e Conceição a chamou de irmã. Diva contou que veio a Paraty por incentivo da sobrinha-neta Maitê Barp, de 21. ;No ano passado, ela me falou da Flip e vim com meus colegas de faculdade. Gostei muito e retornei dizendo que ela tinha que vir;, afirmou a jovem.

No encontro, Conceição presenteou Diva com três livros Becos da Memória (2006), Insubmissas lágrimas de mulheres (Nandyala, 2011) e Histórias de leves enganos e parecenças (Editora Malê, 2016). Quando perguntada sobre o sucesso repentino, Diva brinca: ;Mas nossa divei mesmo. Foi muito bom, um renascimento e libertação. Eu tinha que divar, não é meninas? Virei verbo;, afirmou.

Conceição falou que a escrita era o espaço da ;vingança; contra o racismo, onde ela exorcizava as descriminações. Já Diva disse que encontrou o alento no esporte como velocista e jogadora de basquete. ;Era agressiva no esporte. Não na disputa, mas sendo destemida e determinada;. Ela transformava toda raiva no esporte. ;Fico muito triste quando o governo (federal) anuncia que quer tirar a educação física das escolas;, disse em referência à reforma do ensino médio.

Relato emocionante

No relato que levou Lázaro e boa parte da plateia às lágrimas, Diva contou que é neta de escrava e disse que foi levada a um colégio interno aos 5 anos de idade, onde ficou até os 9 anos. Foi lá que Diva passou por situações que deixaram cicatrizes como foi revelado por ela. O que viveu no internato fez com que amadurecesse aos 6 anos de idade. ;Sou do Sul do Paraná, lá do interior. Sou uma brasileira que sobreviveu porque tive uma mãe que fez de tudo, passou por todas as humilhações, para que nós estudássemos;, disse.

Na história contada pela freira a diferença de cor entre brancos e negros se deveria ao fato da criação de um Rio por Deus - certa mitologia de origem- onde brancos e negros se banharam. Trabalhadores os brancos teriam se banhado na água limpa e por preguiça os negros só teriam chegado até a lama. Com essa história as freiras explicavam a diferença do tom de pele das pessoas e o motivo de os negros terem apenas as palmas das mãos e pés brancos. ;Amadureci com seis anos de idade. Demorei a aceitar esse Deus.; Diva disse que repassou esses conhecimentos aos seus alunos em sala de aula. ;Sou uma sobrevivente pela educação;, afirmou.

Durante o encontro com Conceição, as duas se identificaram também nas leituras que fizeram. Tanto Diva como Conceição leram e gostaram de O meu pé de laranja lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos. ;José Mauro começou a ser desprezado pela crítica quando caiu no gosto popular;, relembrou Conceição citando outras obras do autor, como o livro Barro Branco.

Diva mora sozinha em Curitiba, cidade onde atuou como professora por 40 anos. Atualmente aposentada, ela gosta de ir ao cinema e ;quando pode pagar; gosta de assistir ao teatro. ;Leio bastante. De tudo, do céu ao inferno;, pontuou. Em seu depoimento, ela chamou atenção para o glamour atribuído a Curitiba, ;vista como cidade europeia;. Ela lembrou que, no entanto, a vida para quem é negro e mora da periferia da cidade é bem diferente. Diva relatou as situações de discriminação que vive: ;Ignoro a maioria das vezes. Vou para onde eu quero. Quando chegou numa loja, sempre vem alguém que pergunta: a senhora quer que oriente em alguma coisa. Eles ficam andando atrás de mim, mas resolvi dar uma canseira neles. Ando, ando pela loja e depois vou embora.;

Mas, antes de receber os holofotes, Diva relata que passou por momento de discriminação em Paraty. A professora passeava pela cidade, quando foi abordada por uma mulher que se queixou do coco de um cão na calçada e repreendeu Diva como se o cachorro fosse dela. ;Psiu, psiu. Estão me chamando, então olhei. Esse cachorro aqui é teu? ;Deixou esse cachorro fazer coco aqui. Vai limpar;. Olhei para ela e disse: por que esse cachorro tem que ser meu; Ela ficou meio resmungando eu sou a única pessoa que passou por aqui nesse momento. Esse cachorro não é meu. Veio uma senhora e disse não liga não. Como não liga não? Foi bem isso e sei porque ela falou. Mas não vou chegar ao nível dela. Aconteceu aqui em Paraty quando estão homenageando quem? Lima Barreto.;

Diva se tornou símbolo desta edição da Flip que trouxe a questão racial para o debate central. Na tarde de ontem, curadores do Festival de Arte Negra que será realizado em Belo Horizonte em novembro manifestaram interesse em convidá-la para ir à capital mineira.

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