Economia

China inicia ataque ao dólar

Presidente chinês defende a substituição da moeda norte-americana no comércio mundial. Ele tem a simpatia de Lula, que propõe serem feitos em iuan e real os negócios entre o Brasil e o país asiático

postado em 04/04/2009 11:27
Enfraquecido pela própria decadência da economia dos Estados Unidos, o dólar está sob ataque por todos os lados. Um número cada vez maior de governantes contesta sua predominância como moeda de referência no cenário internacional. Os principais golpes vêm do governo da China, que quer aumentar a importância do iuan-renmimbi nas transações comerciais e financeiras globais. Como ainda não existem concorrentes fortes no curto prazo, a tese que mais ganha adeptos é a da criação de uma divisa internacional, independente de todos os países. Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se juntou ao coro, propondo que o comércio entre China e Brasil seja feito nas divisas locais, prática que começou a ser adotada com a Argentina, mas que ainda enfrenta resistência dos empresários. ;Precisamos criar novos mecanismos para não ficarmos tão dependentes do dólar;, disse Lula, em Londres. A proposta de retirar a divisa norte-americana do comércio bilateral foi feita anteontem ao presidente chinês, Hu Jintao, numa conversa paralela à cúpula do G-20, grupo das 20 maiores economias do mundo. Lula reconheceu que a implantação da medida seria complicada, pois exigiria a harmonização de regras dos dois bancos centrais. Segundo ele, o governo brasileiro apoia a ideia de criação de uma moeda de reserva internacional defendida pelo parceiro chinês. As equipes econômicas discutirão o tema em 19 de maio, quando Lula visita a China. Em 2008, o Brasil exportou US$ 16,4 bilhões para o parceiro e importou US$ 20 bilhões. Aos poucos, o governo chinês vem assinando acordos de trocas de moedas com vários países, ampliando a influência do iuan no mundo neste momento de crise econômica e financeira. Nesse tipo de empréstimo, um país recebe uma quantia determinada de dinheiro para melhorar as suas contas externas, pagando com suas próprias divisas. Quando os recursos não são mais necessários, a operação se desfaz sem ônus. O BC brasileiro tem um acerto de US$ 30 bilhões com o Federal Reserve (Fed, o BC norte-americano), mas ainda não precisou sacar os recursos. A China já fez convênios com cinco países e uma região autônoma, num valor equivalente a US$ 95,6 bilhões. Os beneficiários são Coreia do Sul, Hong Kong, Malásia, Indonésia, Bielorrússia e Argentina. Mudança virá A China tentou incluir o assunto sobre a nova moeda de referência mundial na pauta da reunião do G-20, mas não conseguiu o apoio formal das outras delegações. Na avaliação do economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor do Banco Central (BC), a tendência é de que, em médio e longo prazo, o dólar deixe de ser a principal referência nas transações internacionais. O motivo é a perda relativa da importância da economia norte-americana. Mas, por enquanto, ainda não se vislumbra qual poderia ser o substituto. ;O iuan ainda não é forte o suficiente e o euro não disse a que veio. O ideal é que seja uma moeda não ligada a nenhum país, mas o governo dos Estados Unidos vai resistir o quanto puder à ideia. O país se beneficia muito com as coisas se mantendo como estão;, disse. Ao comprar dólares e títulos da dívida do Tesouro norte-americano, todas as nações do mundo financiam os dois déficits do país: o fiscal e o das contas externas. A própria China faz isso. Dos US$ 2 trilhões de reservas, cerca de US$ 800 bilhões são aplicados em papéis dos EUA, o que torna os chineses seus principais credores no mundo. Ontem, Lula qualificou de contrassenso o fato de os bancos centrais dos países emergentes continuarem procurando esses bônus num momento em que a economia pilotada pelo presidente Barack Obama está tão debilitada. ;Pela lógica, o dinheiro deveria estar fugindo dos Estados Unidos para os títulos do Tesouro brasileiro, porque temos uma economia muito mais sólida do que eles;, ironizou. Viabilidade Hu Jintao propôs à Organização das Nações Unidas (ONU) um estudo sobre a viabilidade de uma moeda internacional, tarefa entregue ao prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz. Ele concluiu que a melhor saída seria usar como ponto de partida a referência do Fundo Monetário Internacional (FMI), os Direitos Especiais de Saque (SDR, na sigla em inglês). ;Nas condições atuais, nenhuma moeda pode, rápida e isoladamente, substituir o dólar. O SDR seria uma solução mais adequada, já que sua emissão ficaria sob responsabilidade de um organismo multilateral, como o FMI. Mas acho difícil que os países abdiquem de sua soberania monetária em favor de um órgão supranacional;, afirmou o economista Alkimar Moura, professor da FGV e ex-diretor do BC. Na avaliação de Moura, o dólar deve perder a posição de ;quase absoluta primazia; no cenário global, cedendo terreno para o euro, o iene, a libra esterlina e outras, que ganharão uma posição relativamente maior na liquidação das operações internacionais. Mas o processo deve ser gradual, acompanhando os movimentos geoeconômicos e políticos. Para o professor, uma desvalorização muito brusca poderia representar uma perda significativa de capital para as reservas chinesas. Por isso, o governo da China não tem interesse em inviabilizar a própria sobrevivência do dólar neste momento. Uma mudança mais lenta, tão ao gosto da cultura oriental, permitiria um realinhamento menos traumático da carteira de papéis. Memória A última tentativa A ideia do presidente da China, Hu Jintao, de criar uma moeda global não é nova. Afinal, o ataque atual não é o primeiro sofrido pelo dólar como referência mundial. Na década de 70, logo após a Guerra do Vietnã e sob efeitos do primeiro choque mundial do petróleo, a economia dos Estados Unidos se estatelou sob a frágil presidência de Jimmy Carter. O segundo choque do petróleo piorou a situação e abriu um flanco na guarda da moeda norte-americana. Com o padrão-ouro extinto desde o início da década, os europeus começaram a defender a substituição do dólar como referência monetária. Nesse período, a população dos Estados Unidos sentiu a crise no bolso, pois a inflação anual chegou aos 13,85%. Naqueles anos, um índice de 7% era considerado muito forte. Desestabilizado, o dólar poderia derreter. A reação foi forte. Sob a mão de um economista duro como pedra, Paul Volcker, o Federal Reserve (banco central norte-americano) subiu os juros para 17% em 1980 e trancou as portas do Tesouro. O desemprego foi o maior desde a Grande Depressão, fábricas fecharam e o mundo se arruinou. A dose foi pirotécnica, mas os EUA saíram da crise já no governo Reagan e puxaram o resto do mundo com corte de impostos, muito gasto militar e tapete vermelho ao capital. Agora, enfraquecido pela crise econômica que originou-se de especulações financeiras nos Estados Unidos, o dólar volta a passar por um teste. Há quem aposte que, desta vez, o fim da história será diferente, pois a opção de elevar os juros à estratosfera não existe.

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