Economia

O fim dos carnês

Inadimplência e fusão com o grupo Pão de Açúcar fazem Casas Bahia trocar o crediário próprio pelos cartões

postado em 27/03/2010 10:13
Chegou ao fim um mito do mercado varejista brasileiro. O tradicional carnê das Casas Bahia sucumbiu à inadimplência e à fusão da rede com o grupo Pão de Açúcar. O prazo limite para que clientes façam o crediário nas lojas se encerra neste mês. Ainda assim, só é possível fazer o carnê até o dia 31 em algumas poucas unidades e com raríssimas exceções. A empresa trocou o talão de boletos pelo parcelamento nos cartões de crédito ou da própria loja.

Fundada em 1952, a Casas Bahia revolucionou o varejo ao abrir as portas do consumo para milhões de brasileiros. Por meio de financiamentos de longo prazo em carnês próprios, pessoas de baixa renda tiveram a oportunidade de comprar bens duráveis, como televisões, aparelhos de som e geladeiras. No início dos anos 2000, a rede financiava quase R$ 5 bilhões por ano. Agora, vai deixar toda a operação de crédito para os parceiros bancários. No crediário, agora, só quem já comprou e ainda não quitou a dívida.

Contumaz cliente da rede, Rosivânia Alves Rodrigues, 39 anos, lamenta o fim do carnê. Quem não tem dinheiro para comprar à vista nem tem cartão de crédito fica no prejuízo. É muita gente que está nessa situação. Porque ter cartão da loja não é fácil. Na análise (de crédito), eles verificam tudo. Querem comprovação de renda. Se o carnê acabar, fica ruim para muita gente, disse.

Rosivânia conta que quando foi morar sozinha, há cinco anos, só conseguiu mobiliar a casa porque teve acesso ao crediário. ;Não tinha condição (financeira) de pagar à vista, nem de ter cheque ou cartão. Foi tudo no carnê;, ela lembra. Nem por isso, deixou de comprar. Entre 2006 e 2008, comprou um aparelho de som, um televisor e um aparelho de DVD. Um atrás do outro. E sempre no crediário. ;Esperava um carnê acabar e já começava outro. Sempre um só produto por vez, para não ficar apertada no fim do mês;, ensinou.

Modernização

Com o passar do tempo, a vida foi melhorando e a situação financeira de Rosivânia também. Como consequência, trocou o carnê de papel pelo cartão da loja. ;O ruim do carnê é ter sempre de encarar fila. E também é ruim para pagar, porque, se você atrasa um dia sequer, só pode pagar o boleto no banco.; E não para por ai. ;Também têm a questão dos juros, que são mais altos no carnê do que no cartão;, ponderou.

Em 2004, a Casas Bahia passou a dividir o ônus da oferta de crédito com um parceiro bancário, o Bradesco. Desde então começou a modernizar as formas de pagamento para diminuir o volume de mau pagadores. Nesse processo de evolução, o crediário foi encolhendo até desaparecer. ;Nós paramos de fazer os carnês por causa da inadimplência que estava muito alta. Não valia mais a pena;, contou um funcionário da rede que preferiu não se identificar.

A reportagem percorreu as lojas dos principais centros comerciais de Brasília. Em todas elas, os vendedores foram unânimes: ;não é mais possível fazer o crediário;. Apenas em uma loja de um dos principais shopping de Brasília, o Conjunto Nacional, o funcionário informou que em algumas situações poderia fazer o crediário, mas somente para clientes já cadastrados na loja.

Para Roque Pellizzaro, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), a fusão com o Pão de Açúcar influenciou na decisão de extinguir o crediário. ;O fim dos carnês também faz parte da fusão. A interação dos bancos de dados do Pão de Açúcar, da Casas Bahia e do Ponto Frio diminui as despesas de operações financeiras. O Pão de Açúcar tem muita expertise com cartão próprio e está levando isso para as empresas que adquiriu;, avaliou Pellizzaro. A reportagem tentou entrar em contato com a Casas Bahia, mas não conseguiu retorno.


AJUDA DO SPC

Para resguardar o varejo, o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) está estudando a criação de um cartão próprio. A intenção é que os pequenos comerciantes não tenham mais que usar carnês próprios e possam administrar melhor a inadimplência. O projeto, ainda embrionário, está em fase de testes no Rio Grande do Sul, em algumas cidades do interior gaúcho. ;Trata-se de uma facilidade a mais para o usuário e para o comerciante. Queremos facilitar as operações financeiras dos micro e pequenos empreendimentos, que não têm condições de criar um cartão próprio;, explicou o presidente da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas, Roque Pellizzaro. Se os testes forem bem sucedidos, depois de um primeiro estágio no qual o crédito será ofertado pelo próprio lojista, o SPC irá procurar um parceiro bancário para alavancar as operações do cartão.

Parceiro bancário

Na avaliação de varejistas e de representantes do setor, o crediário tradicional está sendo abandonado por causa da inadimplência e de novas tecnologias, como os private labels (cartões da própria loja). Segundo o diretor de serviços da Ricardo Eletro, Samuel Belo, os carnês representam cerca de 22% das operações de crédito da rede e seguem em trajetória de queda. ;Não somos só nós que mudamos a maneira de operar. O mercado todo trabalha assim. Nem todo mundo tem caixa para bancar financiamento. Grandes varejistas têm por trás uma instituição financeira;, explicou Belo. ;Nós tratamos com o cliente os detalhes de preço e juros e gerenciamos a carteira. O parceiro bancário opera o financiamento.;

Divisão

Segundo o presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), Roque Pellizzaro, essa tendência é cada vez mais forte, mas somente entre os grandes no mercado. Para o comerciante, um dos maiores benefícios do fim do crediário tradicional é a parceria com uma instituição financeira, que assume a inadimplência na maioria das operações. ;Existem vários tipos de contrato. Em alguns, a inadimplência é dividida entre os parceiros. Em outros, o banco assume tudo;, relatou.

O que ainda impede a extinção completa do carnê em todo o varejo é a proximidade que esse tipo de crédito gera entre o comerciante e o cliente. O consumidor tem de ir à loja para quitar as prestações e negociar pagamentos atrasados. No cartão, segundo os varejistas, se o cliente fica inadimplente por 60 dias, acaba não voltando mais à loja.

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