Depois do abrigo

Leonardo, o menino que soube renascer

Nesta e nas próximas quatro sextas-feiras, o Correio vai contar a história de jovens criados em instituições de acolhimento. Eles não foram adotados, mas conseguiram superar a história de abandono e construir um projeto afirmativo de vida

postado em 01/08/2014 06:00
Nesta e nas próximas quatro sextas-feiras, o Correio vai contar a história de jovens criados em instituições de acolhimento. Eles não foram adotados, mas conseguiram superar a história de abandono e construir um projeto afirmativo de vida
Aos 7 anos, Leonardo cuidava dos cinco irmãos mais novos. A mãe saía para trabalhar de faxineira e o pai, alcoólatra, passava dias sumido. Quando as crianças faziam muita bagunça no barraco de dois cômodos, o mais velho repetia o gesto da mãe: tomava água com açúcar para se acalmar. ;E não dava para nenhum deles. ;Só eu que estou nervoso, só eu que posso tomar;, eu dizia.; Leo fazia almoço, lavava louça, dava banho nas crianças, acalentava os mais novos.

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Ficavam trancados dentro do barraco até a mãe voltar da faxina do dia. Ficariam trancados mais tarde, no abrigo para onde foram levados. ;Só saía para almoçar, lanchar e pronto. É como se você fosse preso quando é criança. Você não entende o mundo lá fora.; As emoções também ficaram trancafiadas durante muito tempo. ;Fui aquele menino que não expressava sentimento. Se a pessoa chorava, eu dizia que ela era fraca. Ela não pode chorar, ela tem que lutar, não tem tempo pra choro. Fui muito duro comigo mesmo.;

[SAIBAMAIS]Aos 20, Leonardo Almeida de Jesus faz faculdade, cumpre estágio em órgão público federal e mora de aluguel num apartamento de dois quartos na Candangolândia. Tem tevê, computador, cozinha completa, sofá, mesa de seis lugares, quartos devidamente equipados. Na estante, jogos de tabuleiro, DVDs (;todos originais!”) e livros. No bufê, fotos dos irmãos e de amigos ; a rede de proteção que o dono da casa construiu desde aquele dia. Leonardo também tem um sorriso permanente, de dentes alinhados e bem-cuidados.

Nesta e nas próximas quatro sextas-feiras, o Correio vai contar a história de jovens criados em instituições de acolhimento. Eles não foram adotados, mas conseguiram superar a história de abandono e construir um projeto afirmativo de vidaA rotina de mãe trabalhando e do pai chegando em casa bêbado e violento terminou no dia em que ;uns dez camburões pararam na frente de casa para nos levar;. Uma dezena é número aparentemente exagerado, talvez fruto do impacto que foi a chegada da polícia para averiguar o abandono daquelas crianças, denunciado pelos vizinhos. Foi uma tarde longa aquela. Começou logo depois do almoço e terminou à noite. Nos primeiros dias, a neném de 1 ano chorava muito. ;Cadê o irmão dela?; E íam buscar Leonardo para que ele acalentasse a caçula. ;Eu ficava com ela no colo até ela dormir.;


Foram e voltaram
As duas irmãs menores ficaram numa casa-lar; as duas maiores em outra e os dois mais velhos em outra. Todos dentro do mesmo abrigo, um dos mais bem estruturados de Brasília. As duas pequenas foram adotadas por um casal que mora em Uberlândia, Minas Gerais. As duas maiores também encontraram novos pais, mas a experiência durou apenas nove meses. ;Não deu certo. Eles não deixavam elas nos visitar. Mudaram o nome delas. Elas voltaram para o abrigo e voltaram a ter o nome de antes. Começamos tudo de novo.; Adolescentes de 16 e 17, as garotas continuam no abrigo até completarem 18 anos. Aí vão se juntar aos dois irmãos, Leo e Eliel.

Nesta e nas próximas quatro sextas-feiras, o Correio vai contar a história de jovens criados em instituições de acolhimento. Eles não foram adotados, mas conseguiram superar a história de abandono e construir um projeto afirmativo de vidaQuando a maioridade vai se aproximando, lá pelos 16/17 anos, os abrigos começam a se inquietar. Os quase ex-abrigados precisam de um lugar para morar, um trabalho para se sustentar e, de preferência, uma escola para continuar estudando. Não há estimativa de quantos conseguem viabilizar uma vida adulta cidadã. Leonardo estima, pela experiência vivida, que menos da metade de seus ex-colegas de abrigo conseguiram escapar das drogas, da prostituição ou de outros recursos pouco lícitos.

Desde menino, Leonardo arquitetava o futuro. ;Gostava de construir casinhas com palito de fósforo. Arrumava as coisinhas direitinho nos lugares. Minha casa vai ser assim e assim, até hoje me lembro disso. Nem imaginava que ia parar num abrigo.; O irmão mais velho daquele barraco de dois cômodos na Fercal foi afastado dos pais, mas não perdeu a família. ;Meus irmãos têm a mim. Nós estamos assim hoje porque estamos unidos. Sou o mais velho, tenho a missão de unir todos.;

Houve chance de adoção, mas Leonardo não quis. ;Apareceram vários casais que estavam muito bem financeiramente que queriam me adotar, mas eu não queria ser adotado.; Por uma única razão: ;Eu não queria trocar meu sobrenome, só por isso;. Seguiu sendo Almeida de Jesus. Mesmo naquele dia em que o pai apareceu no portão e avisou a quem estava mais próximo que era pai de quatro abrigados, Leonardo não quis mais do que manter o sobrenome e ficar perto dos irmãos. ;Ele disse: ;Oi, Leonardo;. Eu falei: ;Oi;. Mas não tinha aquele amor que você tem por um pai, mas você sabe que é seu pai e tem respeito por ele.;

O pai reaparece
O pai insistiu, procurou a Vara da Infância e da Juventude para recuperar a guarda das crianças. O juiz ouviu todos os irmãos, cada um de uma vez, mas nenhum quis voltar ao pátrio poder. Por trás da decisão, estava o conselho do mais velho. ;Eu disse pra eles que talvez a nossa vida voltasse a ser como era antes.; Os quatro continuaram na instituição de acolhimento. A mãe os visitou até certo tempo, depois foi embora de Brasília. Teve mais duas filhas gêmeas. Embora loquaz, Leonardo não se estende muito quando o assunto são os seus pais. ;Já pensei em ir atrás deles quando eu estiver bem financeiramente.;

A adoção não aconteceu, mas Leonardo foi tecendo rede de afetos nos quais ele se apoiava para seguir concretando as casinhas de palito de fósforo. Uma desses fios foi a zoóloga Cristina Prando Bicho, que apareceu no abrigo, muitos anos atrás, para ser voluntária em curso de informática. A teia de amizade entre os dois perdura até hoje. Ela foi fiadora do primeiro aluguel de Leonardo e o ajuda a fiar, ponto a ponto, os passos seguintes de seu começo de vida adulta.

Aluno de ciências contábeis em uma faculdade particular, Leonardo quer ser empresário, ter escritório montado. A determinação parece ser atávica. Quando foi para a escola pela primeira vez, colocaram-no na 1; série. Leo não sabia ler nem escrever, mas só ele sabia que não sabia. ;A única coisa que eu sabia era escrever meu nome. Não lembro como aprendi, mas sabia. A professora mandava escrever um texto grande e eu juntava um monte de letras e intercalava com o meu nome. Era só o que eu sabia escrever.; Foi reprovado.

Na escola, Leonardo comprava a briga dos mais indefesos do que ele. ;Se alguém maltratava uma criança, eu queria tirar a justiça. Eu vi o que sofri e não tinha ninguém pra comprar as minhas dores. Quando você apanha de alguém na escola, não tem pai nem mãe que vai lá tomar satisfação. Já juntei vários moleques para pegar menino que tinha batido em outro;, conta, rindo das estripulias de infância. Embora, ele diga que não foi criança. ;Eu me tornei maduro muito cedo.;

Líder de jovens na igreja Sarah Nossa Terra, Leonardo orienta gente de sua faixa etária. ;Me ajudou muito ter vivido no abrigo. Posso ajudar essa pessoa. Sei o que ela passa, sei o que ela sente.; Concluído o curso superior, pensa em fazer mestrado/doutorado. ;Quero me casar, construir uma família. Um dia, meus filhos vão saber que morei num abrigo, que passei pelo que passei e construí o que construí. E eles que não passaram vão ter a possibilidade de construir uma coisa muito maior. Sofrer todo mundo sofre, mas aquela geração de não ter o que comer, de não ter com quem conversar, de família desestruturada, acabou.;

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