Haiti

Crianças haitianas nascidas após o terremoto viraram xarás de brasileiros

postado em 24/01/2010 08:19
; Renato Alves
Enviado especial

Porto Príncipe ; A morte e a vida estão muito próximas no Haiti. Desde o terremoto do dia 12, militares brasileiros têm feito de tudo para salvar os feridos que pedem ajuda em unidades do Exército e da Aeronáutica. Nem sempre é possível socorrer todos. Em meio ao circo de horrores de uma das maiores tragédias da humanidade, médicos e enfermeiros vibram a cada sinal de esperança. Até a noite de ontem, eles haviam trazido ao mundo sete haitianas. Filhas de pais desabrigados. Alguns, com ferimentos graves.

[FOTO1]Os dois bebês nascidos mais recentemente das mãos de brasileiros passam bem ao lado das mães, no Hospital de Campanha da Aeronáutica (1), em Porto Príncipe. Marly veio ao mundo sexta-feira última, às 3h30 (hora local), em parto normal, com 3,5kg. A mãe, Genati Batiste, 28 anos, chegou à unidade de saúde brasileira já com fortes dores. Foi encaminhada imediatamente a uma maca para o procedimento, feito pela obstetra e tenente Daniella Gil e pela pediatra e capitã Marly Castro, ambas do Exército.

A pediatra e o bebê têm o mesmo nome. Mas os pais da criança não sabiam disso. A coincidência inexplicável emocionou a médica brasileira. ;Nos toca bastante quando isso acontece, ainda mais em um cenário tão difícil como esse;, comentou, de forma serena, a capitã Marly. A mãe e o pai, Henry Christophe, 34, não esconderam a gratidão. ;Estamos em dias muito difíceis, mas a criança traz uma luz nova à nossa vida;, ressaltou Genati. Com o terremoto, a família perdeu a casa, mas não a esperança.

Já a tenente Daniella Gil está acostumada com os partos e as homenagens dos haitianos. Ela participou do atendimento a seis das sete crianças nascidas após o terremoto. E ganhou duas xarás haitianas. A tenente-médica, que não tem filho, ajudou a trazer ao mundo duas meninas logo no dia seguinte ao terremoto que destruiu os poucos hospitais de Porto Príncipe. A primeira foi o caso mais complicado. ;Foi uma das maiores experiências da minha vida. Já fiz muitos partos, mas não nessas condições, totalmente adversas;, comentou a tenente.

Atingida pelos destroços da casa, a mãe, Manouche Dumont, 25 anos, foi resgatada por militares brasileiros que sobreviveram à destruição da base do Exército em Cité Soleil ; maior favela de Porto Príncipe ;, onde morreram 10 dos 18 militares brasileiros vitimados pelo terremoto. Manouche chegou ao quartel-general das Forças Armadas brasileiras já em trabalho de parto, logo após o forte tremor de terra. Logo estava deitada em um colchão do hospital improvisado. Àquela altura, em meio ao caos e ao desespero, no meio da madrugada, os moradores feridos da região foram para a porta da base militar e ficaram pedindo ajuda.

Os militares deixaram entrar até 300 pessoas, os casos mais graves, pois contavam com apenas dois médicos e 13 enfermeiros. ;Parecia uma cena de guerra. Começamos a pegar colchões dos quartos e remédios. Mesmo quem não era médico ou enfermeiro ajudou. Uns limpavam os feridos e faziam os curativos. Mas, infelizmente, muita gente morreu antes mesmo de ser atendida. As bebês vieram para nos dar força, esperança;, lembrou o sargento Josemar da Rocha, 33 anos.

A filha de Manouche nasceu com quase 3kg. Imediatamente, a mãe perguntou o nome da médica e assim decidiu chamar a filha. O pai, o músico Ricardo Dumont, 24 anos, só reencontrou a mulher dois dias depois. Ele não estava em casa quando a terra tremeu e cerca de 70% das construções de Porto Príncipe vieram abaixo. Passou 48 horas perambulando pela cidade em ruínas procurando desesperadamente pela mulher grávida. Quando entrou na base militar brasileira, a viu deitada, de banho tomado, cercada de cuidados médicos, ao lado da filha.

Agora, Ricardo não para de agradecer aos brasileiros. Após arrumar caneta e papéis, decidiu escrever uma carta para cada militar da unidade saúde e da equipe que resgatou a mulher na rua. ;Eu queria pagar pelo parto, mas agora não tenho como arrumar serviço. O lugar em que eu tocava bateria caiu. Durmo na rua. Mas quando conseguir emprego de novo, virei aqui e pagarei por tudo. Os brasileiros operaram um milagre em nossas vidas;, disse o pai, emocionado.

Mãe e filha ainda estão na enfermaria da base. Manouche teve forte hemorragia em função dos ferimentos. ;Mas ela vai ficar bem;, garantiu a tenente Daniella. Nascida em Niterói (RJ) e lotada em Pelotas (RS), ela fez outro parto no dia 13, quando haitianos ainda tentavam entender a extensão dos danos causados pelo tremor. A mãe, Venezia Antonie, também chegou à base brasileira em trabalho de parto. Também deu à luz uma menina, chamada Lulu, em homenagem ao sargento brasileiro Lucimar, que ajudou no nascimento da criança. Antonie e Lulu estão na casa de familiares. A residência delas foi totalmente destruída pelo terremoto.


1 - Estrutura
Montado no dia 17, o hospital funciona em uma área ao lado da base brasileira General Bacelar, no bairro de Tabarre, a 10km do centro de Porto Príncipe. Tem 48 profissionais de saúde de diversas especialidades e atende entre 300 e 400 pessoas diariamente.

O número
1.200 procedimentos médicos
haviam sido feitos pelo hospital de campanha da Aeronáutica até ontem, sendo 30 delicadas cirurgias

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