Ser Sustentável

Protegendo a infância

Ludotecas montadas pelo Instituto Sabin fornecem atendimento psicológico a crianças que sofreram abuso físico, emocional e sexual. Cerca de 30 mil pessoas já foram beneficiadas

postado em 07/11/2014 14:38

Esmeralda:

;Minha história de violência começou aos 6 anos de idade. Eu não sabia que era errado, não sabia o que estava acontecendo. Só muitos anos depois, aos 24, decidi procurar ajuda. Era difícil falar sobre, mas falei, me tratei e, com a ajuda de profissionais maravilhosos, superei. Hoje, sou uma pessoa curada.; O relato de Esmeralda Moreira Fernandes, 46 anos, emociona. Vítima de incesto dos 6 aos 12 anos, Esmeralda é considerada uma sobrevivente por quem está à sua volta. E usa a experiência para ajudar outras pessoas a se recuperarem. O que antes era medo se tornou uma história de vida conhecida e que inspira outras vítimas a buscarem ajuda.

A dor de ter sido vítima de abuso sexual quando criança se tornou sua bandeira, sua razão de viver. ;Desde que me curei senti a necessidade de ajudar quem sofreu a mesma realidade que eu vivi. Faço questão de mostrar a elas que é possível superar. E eu sou a prova viva disso.;

Esmeralda decidiu usar o aprendizado do sofrimento e de cura para favorecer outras pessoas. Hoje no Exército da Salvação, ela já se envolveu em várias iniciativas relacionadas ao tema, entre elas o Projeto Ludotecas, desenvolvido durante o período de 10 anos em que trabalhou como gerente do programa de responsabilidade social do Laboratório Sabin.

Em 2005, ajudou a fundar o Instituto Sabin e, pouco tempo depois, graças a uma parceria com o Conselho da Mulher do Distrito Federal, o instituto, sob o comando de Esmeralda, criou o projeto Ludotecas, para atender exclusivamente crianças vítimas de abuso sexual e físico.

Ela explica que a ideia do espaço é que por meio de bonecos e brinquedos as crianças contem os problemas vividos para viabilizar o tratamento psicológico, feito na própria ludoteca por profissionais da rede pública de saúde. ;Fiz com muito amor porque isso faz parte da minha história. Meu coração sempre esteve na questão da proteção das crianças, e esse projeto foi a forma que encontrei de retornar à sociedade o bem que profissionais e amigos dedicaram a mim ao longo do meu processo de cura;, diz.

Os primeiros espaços foram instalados nos fóruns de justiça do DF. Lá as crianças aguardavam enquanto a mãe era ouvida pelo juiz. Antes, a criança vivenciava duas vezes o trauma, a primeira quando a família sofria a violência em casa e a segunda quando a mãe relatava para a justiça. ;Aproveitamos por ser um espaço multidisciplinar para que ela também relatasse o que tinha sofrido, fosse violência física, social ou sexual. Era uma forma de tratarmos os mais frágeis.; Depois, a equipe formada por psicólogos e assistentes sociais passou a atender em hospitais e, desde então, as ludotecas se multiplicaram. ;Sempre alcançamos resultados muito positivos. Era uma satisfação ver que o projeto com pouco tempo de vida já colhia belos resultados;, conta.

Rede do bem
Em 2008, Esmeralda recebeu uma proposta de trabalho e se mudou para o exterior. Fábio Deboni, atual gerente executivo do instituto, assumiu a responsabilidade pelo projeto, que hoje tem 40 ludotecas em atividade em três estados e já beneficiou cerca de 30 mil pessoas ao longo de seis anos de atuação. ;Os brinquedos e os jogos auxiliam o trabalho. Quando a criança está ali, naquele ambiente, se sente mais à vontade para falar da violência que sofreu ou presenciou, o que facilita um diagnóstico.;

Deboni: investimentos de R$ 300 mil por ano e retorno inestimável

A parceria com órgãos do governo se manteve e hoje há convênios com a Secretaria de Saúde, a Secretaria de Assistência Social, a Secretaria da Mulher e a Polícia Civil. Com atuação no DF, em Uberaba (MG), Anápolis (GO) e Salvador (BA) e investimento médio de R$ 300 mil ao ano, Deboni explica que pretende ampliar o atendimento para outras cidades onde o Sabin atua, como Manaus e Belém. ;Também criaremos novas ludotecas no DF, em Uberaba e Salvador. Até o fim do ano serão mais quatro.;

Sobre o retorno, o gerente é enfático. ;O que ganhamos não pode ser mensurado, vale mais que qualquer verba que investimos, que é o aprimoramento de políticas públicas e o ganho da sociedade com o cuidado de uma causa tão nobre.;

Caminhos da cura
Fernanda Falcomer, 36 anos, psicóloga da Secretaria de Saúde do Distrito Federal no Programa de Atendimento à Violência, é uma das profissionais que atendem na ludoteca que funciona no Hospital Materno Infantil de Brasília, localizado na Asa Sul. Presente desde o início do projeto, Fernanda conta que o investimento nos brinquedos trouxe resultados positivos para o tratamento das crianças e famílias que atende. ;O fato de utilizarmos brinquedos, que fazem parte do universo infantil, cria condições de avançarmos com eficácia na terapia. O espaço adaptado nos possibilita acessar os medos, as emoções e os sofrimentos por trás dessas histórias;, diz.

Elizabeth e Fernanda: ambiente lúdico auxilia recuperação

Ela conta que, após a instalação das ludotecas, os resultados positivos são alcançados com mais frequência. Alterações de comportamento desenvolvidas após o abuso, como pesadelo, insônia e distúrbios alimentares, podem ser amenizadas com mais facilidade. ;É gratificante participar do processo de recuperação de famílias inteiras. A maioria dos pacientes faz parte de uma realidade dura, difícil. Amenizar o sofrimento e ver que eles conseguem retomar a vida apesar do que aconteceu é uma satisfação. É a quebra do ciclo da violência que faz a diferença. E é isso que tentamos oferecer.;

História de superação
;Era um dia como outro qualquer no hospital onde trabalho. Crianças entrando e saindo, como acontece sempre. Em determinada hora do dia, entrou na ludoteca uma menininha linda. Tímida, ela não falava quase nada. Mas dei alguns bonecos, e ela se sentiu mais à vontade. Começou com um boneco, depois com outro. Temos de todos os tipos, mulheres, homens, crianças, exatamente para facilitar o processo da vítima contar o que aconteceu por meio desses brinquedos. De repente, ela começou a formar o cenário. Mesmo quem está acostumado com histórias difíceis como nós, ainda assim é duro ver situações como aquela. No fim, a pequena havia montado vários casais, um deitado em cima do outro, retratando o que acontecia em sua casa. Aos 5 anos, ela havia sido abusada sexualmente pelo namorado da mãe a ainda presenciava com frequências cenas impróprias para sua idade. Tratamos toda a família. O agressor foi afastado de sua convivência e novas regras foram estipuladas para o dia a dia do lar. Com todas as orientações seguidas e sessões de tratamento, a menininha superou o trauma;.

Depoimento de Fernanda Falcomer, 36 anos, psicóloga da Secretaria de Saúde do Distrito Federal no Programa de Atendimento à Violência

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