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A guerrilha do cinema

Sob a liderança de Glauber Rocha, os cineastas enfrentaram a ditadura colocando a questão social em primeiro plano ou recorrendo a metáforas para driblar o cerco da repressão

postado em 31/03/2014 16:00
Glauber Rocha agitou a cultura durante o regime militar, com filmes, artigos e provocações (Acervo Tempo Glauber)
Glauber Rocha agitou a cultura durante o regime militar, com filmes, artigos e provocações

A internacionalização da estética da fome impulsionada pelo vulcão Glauber Rocha trouxe ares de vanguardismo ao Cinema Novo produzido no Brasil. O cineasta baiano, como bem salientou o pesquisador José Carlos Avellar, ;filmava como escrevia e escrevia como filmava;. Glauber defendia com unhas e dentes a forma de produção terceiro mundista. ;A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida;, escreveu nas linhas de um manifesto publicado em 1965, o primeiro do cinema novo.


Glauber Rocha (1939 ; 1981) soube como ninguém incorporar ao mesmo tempo as matrizes da cultura brasileira mais distantes e a política de autor do cinema europeu da época para deglutir com força ideológica e formal filmes como Deus e o diabo na terra do sol (1969) e Terra em transe (1967). Com os dois, concorreu em duas edições do Festival de Cannes e alcançou um interesse intelectual genuíno sobre o cinema terceiro mundista que Glauber defendia. ;Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do cinema novo;, apontava Rocha.


Cinquenta anos depois do golpe de 1964 e 29 anos da reabertura democrática, o cinema brasileiro assume diferentes temáticas e, embora ainda pareça calcado em questões sociais, está longe de estabelecer um consenso entre cineastas e pesquisadores sobre as heranças do cinema produzido durante a ditadura no Brasil no cinema contemporâneo. ;Eu acho que o cinema contemporâneo tem caminhos diversos. Há um cinema, representado pela Globo Filmes, que busca o sucesso, o mercado e o divertimento da população seguindo a tendência da televisão brasileira. No entanto, consigo ver algo de subversivo e marginal no trabalho de cineastas como Cláudio Assis, Andrea Tonacci e Cao Guimarães;, acredita o cineasta do cinema marginal Edgard Navarro, autor de O homem que não dormia (2011).

Povo brasileiro

O cineasta Nelson Pereira dos Santos disse certa vez que o primeiro crítico de cinema que enfrentou na vida era um tipo amedrontador e usava distintivo de polícia. ;Meu primeiro filme foi proibido em 1955, antes da ditadura. Rio, 40 graus ficou pronto e seria distribuído pela Columbia Pictures. Mas o chefe de polícia do Rio de Janeiro caçou o certificado do filme. Por sorte, era ano eleitoral e Juscelino Kubitscheck concorria à Presidência da República. O Jornal Carioca apoiava JK e resolveu fazer a campanha a favor do filme. O longa acabou sendo liberado;, relembra o cineasta.


Enquanto a repressão do Estado proibia e restringia a distribuição e a produção de filmes nos anos subsequentes ao golpe militar de 1964, cineastas brasileiros adotavam formas cinematográficas alegóricas ou metafóricas como única maneira possível de serem realizados sob a censura. ;Em Azyllo muito louco (1970), baseado em O alienista, de Machado de Assis, tentava mostrar o asilo dos loucos como a ditadura. E o alienista era o que tinha o poder para dizer quem era louco ou não. É uma sátira, uma metáfora. Era um filme de observação requintada e era a única coisa possível de fazer. Em Fome de amor, nós fizemos uma citação direta de Che Guevara em espanhol. O filme não foi proibido porque tinha uma linguagem acadêmica, e o público não ia entender aquela coisa comunista;, descreve Nelson Pereira dos Santos, um dos pioneiros do movimento que ficou conhecido como cinema novo.


O choque político da sétima arte naquele período difícil residia simplesmente no fato de o cinema ter ido até o sertão nordestino para denunciar a fome e a exclusão colonial, subir os morros cariocas e representar favelados com sede de justiça social ou denunciar casos de exploração de operários. ;Não era comum fazer filmes com temática social até o cinema novo. O que havia eram as chanchadas e as comédias musicais.;


De uma maneira original, os cineastas do período agrupavam-se em pelo menos três linhas: Cinema Novo, Cinema Marginal e cinema feito na Boca do Lixo. Eles recuperavam tradições de investigação da cultura brasileira, fundadas pelo modernismo brasileiro, ao mesmo tempo defendiam uma filiação ao cinema autoral. ;Todos os cinemas novos desta época têm como ponto básico a produção de um cinema anti-hollywoodiano. O que o cinema novo brasileiro trouxe de novo, aprofundando o trabalho iniciado por Edgar Brasil, em Limite (1922), foi o uso de uma luz ;estourada;, mais de acordo com a luminosidade presente no Brasil;, acredita o pesquisador e autor do livro Geração do cinema novo: para uma antropologia de cinema, Pedro Simmonard.

; Memória e censura

O começo e o fim
Vidas secas ficou pronto em 1963, a ditadura começou em 1964. Vidas secas foi selecionado para Cannes com Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha). Eu e Glauber tivemos a sorte de chegar primeiro fora do país e ganhar repercussão internacional. Memórias do cárcere foi lançado no último ano da ditadura, também exibido em Cannes, quando ganhou o Fipresci, o prêmio do júri da crítica. Eu lancei um filme no primeiro ano e no último ano da ditadura militar. Entre um e outro, vários dos meus filmes foram censurados. (Nelson Pereira dos Santos, cineasta)

Pra frente, Brasil (1982)
Foi duro. O filme foi interditado para todo o território nacional e fiquei praticamente todo o ano de 1982 empenhado na sua liberação. Eu não tinha certeza de que apenas o meu filme seria preso. Amigos me aconselhavam a ter cuidado quando saísse de casa ou falasse ao telefone. Ao sair de casa, um carro da polícia colou atrás do meu. Era para me assustar, e me assustou, mas não havia mais clima para prender alguém tão coberto pela imprensa como eu estava na época. (Roberto Farias, cineasta)

Cinema marginal
Eles (os censores) não entendiam as metáforas que a gente usava para subverter a ordem e o pensamento vigente. A ideologia do cinema marginal não era tão panfletária, como a do Cinema Novo. A mensagem era qualificada como rebeldia, anarquia. Fiz um filme sobre psicoativos e fui chamado para ir até os censores explicar por que se tratava de um assunto tabu. A morte de Lamarca, feito em 1984, ficou pronto e não podia ser lançado. No ano seguinte, foi liberado quando o governo já era do Sarney. (Edgard Navarro, cineasta)

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