Trabalho e Formacao

Jogo da vida

Se os videogames dominam horas demais do seu dia, prepare-se: em seis anos, jogar representará 85% das atividades diárias não apenas para diversão. A gamificação é a nova palavra de ordem nas empresas

postado em 22/09/2014 11:34


Funcionários da Câmara dos Deputados usam jogo de tabuleiro colaborativo para buscar soluções para o portal e-Democracia (Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press )
Funcionários da Câmara dos Deputados usam jogo de tabuleiro colaborativo para buscar soluções para o portal e-Democracia


Todos serão jogadores. Essa é a previsão dos especialistas do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), associação profissional voltada para o desenvolvimento tecnológico. Nos próximos seis anos, os jogos vão influenciar o modo como o mundo cuida da saúde, faz negócios ou se educa. Até 2020, jogar fará parte de 85% das atividades diárias do ser humano. Empresas brasileiras se adiantam e utilizam jogos dentro do ambiente de trabalho para selecionar, treinar e engajar funcionários. A gamificação é a nova tendência.

Embora o videogame seja visto como entretenimento, organizações de ramos diferentes integram elementos de jogos às atividades cotidianas. ;Os games podem ser usados para manter o trabalho direcionado a um objetivo claro e, caso haja um sistema de pontos, pode ser usado como um componente para as avaliações de funcionários;, explica Thomas Coughlin, consultor de tecnologia e membro sênior do IEEE. Ele acredita que, futuramente, pontos acumulados em jogos ajudarão a determinar, por exemplo, aumentos salariais.

Gestão e treinamento
Ysmar Vianna, 71 anos, é doutor em engenharia de software pela Universidade da Califórnia, autor do livro Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos e está à frente da MJV, empresa brasileira de consultoria em inovação. Ele tem desenvolvido soluções para integrar jogos no cotidiano de corporações. ;As empresas vão caminhar fortemente nessa direção. Em três ou quatro anos, as companhias vão usar colaboração e redes sociais em avaliações. Os jogos são a primeira versão dessa forma de organização do trabalho;, avalia.

Uma plataforma desenvolvida pela MJV para centrais de atendimento de call center é usada atualmente por três empresas no Brasil. Em contato com os clientes, Vianna percebe como o jogo ajuda, não apenas na interação e engajamento dos funcionários, mas na gestão do serviço. ;Antigamente, as avaliações dos funcionários ocorriam no fim do mês. Com o jogo, o funcionário revela seu conhecimento todos os dias, e o profissional que gerencia a equipe recebe relatórios instantâneos. É um ganho gigantesco para a administração. Os clientes dizem que isso revolucionou a maneira de treinar os funcionários.;

Carlos Augusto Santos, 32 anos, diretor da Ludium, empresa desenvolvedora de soluções gamificadas em São Paulo, explica a diferença entre gamificação e consultorias tradicionais. ;Uma consultoria tradicional, quando muito eficiente, traz uma imagem daquilo que ocorria na empresa há, no mínimo, duas semanas. Com um jogo, essa imagem é atualizada minuto a minuto, graças ao engajamento dos funcionários, que se tornam colaboradores.;

Santos defende o uso da gamificação antes da avaliação de funcionários, começando com o recrutamento e seleção. Ele cita o exemplo da L;Oréal, a primeira a implementar gamificação em nível mundial no processo de contratação. ;A seleção começa on-line, com milhares de candidatos, mas, nas fases finais, quando é possível reduzir esse número para 20 ou menos pessoas, a empresa leva gestores e analistas de recursos humanos para assistir aos concorrentes jogando. Todo o processo de tomada de decisões é usado para medir o conhecimento técnico e avaliar habilidades de liderança e comunicação;, conta. ;A gamificação é usada para captar uma pessoa, e ela responde a isso em anos de trabalho dentro da empresa;, aponta.

As aplicações da gamificação no ambiente de trabalho são as mais diversas. A empresa Aennova é uma consultoria de game thinking com sede em São Paulo e desenvolve soluções gamificadas para corrigir algum problema identificado em qualquer área da empresa. Um exemplo foi o jogo desenvolvido para aprimorar o atendimento dos vendedores de uma rede de materiais de construção. Os atendentes precisavam reconhecer mais de 15 mil produtos.

A solução aplicada pela Aennova foi um jogo de simulação. ;A ideia não era fazer um jogo pontual para jogar uma única vez; sugerimos que eles usassem a simulação num programa de educação continuada;, explica Sunami Chun, 38 anos, diretor executivo da empresa. Como os resultados são transmitidos à administração da firma, essa passa a ter um relatório dos setores de venda que apresentam mais problemas. Com isso, é possível observar novos desafios e dar continuidade ao treinamento virtual. ;O jogo é mais caro que o e-learning, mas pode ser usado por muitos anos. Basta criar novas missões.;

Fora do computador

Gamificação não é necessariamente sinônimo de tecnologia e interfaces virtuais. A inserção de elementos de jogos no ambiente de trabalho pode ser simples como um tabuleiro. Essa é a proposta da startup #AJogada, criada em Brasília há um ano e meio. ;O tabuleiro transforma em jogo os desafios de trabalho. É uma nova maneira de desenvolver um projeto, entendendo cada elemento como uma peça, sejam metas, técnicas ou recursos;, explica Rodrigo Arantes, 27 anos, desenvolvedor da ideia. A ferramenta tem visual simplificado. Os jogadores inserem uma questão-problema no centro do tabuleiro e, a cada rodada, seguem um fluxo circular de pensamento, definindo metas e ações. Rodrigo alerta que a brincadeira não pode ficar no papel. ;Depois, os participantes precisam viver a jogada executando o projeto que criaram, item por item. Os resultados podem ser discutidos novamente em outra partida e assim por diante.;

Diferentemente de outras plataformas, o tabuleiro desenvolvido por Rodrigo não promove o confronto. O objetivo é que todos se vejam como colaboradores. ;#AJogada serve justamente para evitar que as pessoas entrem em competição porque isso produz menos geração de valor que jogos colaborativos;, compara. Ainda assim, é possível identificar quais participantes estão mais envolvidos ou quais setores apresentam dificuldades. É o que explica Pedro Souza, 39 anos, diretor executivo da Simultânea, empresa brasiliense de assessoria linguística, que utilizou #AJogada para revisar seu modelo de negócios. ;Fica claro qual setor não está funcionando.;

O Laboratório Hacker, programa da Câmara dos Deputados que desenvolve soluções digitais livres, também usou #AJogada para resolver problemas no fórum e-Democracia, portal da Câmara com o intuito de aproximar a sociedade das discussões políticas. De acordo com Crisitano Ferri, 39 anos, o objetivo era encontrar uma solução de mapeamento virtual dos argumentos para engajar a população a participar das discussões.

;A metodologia ajuda a delimitar e sistematizar o pensamento. Fico surpreso ao ver que, com apenas uma rodada, temos um caminho a trilhar. Não há hierarquia, todos podem falar igualmente. É uma discussão com clima de mesa de bar, só que organizada.; O desenvolvedor de software da Câmara Dirley Rodrigues, 23 anos, também participou do jogo. ;Todos conseguiram entender. As pessoas tiveram mais facilidade de participar, foram mais objetivas e chegamos a um resultado mais rápido.;

Contraindicações

O consultor de tecnologia Thomas Coughlin defende que o sucesso da gamificação depende do uso correto pela corporação e pelos funcionários. ;Se não forem conduzidos de forma correta, os jogos podem distrair a empresa de seus reais objetivos e até causar estragos nas metas corporativas. A competição deve ser positiva e não negativa;, alerta. Ysmar Vianna acredita que essa não é a motivação de quem joga. ;Quase 90% das pessoas dizem que jogam porque querem se socializar, e menos de 3% dizem que jogam para ganhar.; Ele explica que as pessoas querem competir, muitas vezes, com elas mesmas para melhorar o próprio desempenho, mas o ponto principal é a socialização.

Outros especialistas discutem que nem sempre o jogo é a alternativa mais adequada. Sunami Chun explica que, dependendo da aplicação, existem soluções mais baratas. ;Se você precisa que a pessoa aprenda assuntos complexos e ganhe expertise, o game é a melhor opção. Mas o jogo não é bom para tudo. Se você precisa, por exemplo, informar as pessoas, é muito mais barato fazer e-learning.; Já Carlos Augusto Santos questiona a gamificação sem alinhamento com as necessidades da corporação. ;Muitas empresas em busca de inovação desenvolvem soluções que não são adequadas, mas que estão misturadas ao trabalho. Não saber adequar a gamificação ao processo é um engano. Achar que o jogo vai resolver o problema só porque é divertido é ilusão. Os métodos lúdicos criam engajamento, mas a gamificação não traz as respostas por si só;, conclui.

O que é?
Original do inglês, gamification. É o uso de mecânicas e técnicas de jogos em um contexto não relacionado apenas ao entretenimento, mas com o objetivo de engajar os usuários e resolver problemas.

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