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Entrevista - Marco Aurélio Garcia

Assessor especial de Lula sustenta que Brasil não se envolveu, e "foi envolvido", na crise

postado em 29/09/2009 07:00

O governo brasileiro "não se envolveu mas foi envolvido" no conflito entre o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, e o governo de fato de Roberto Micheletti. Quem afirma é o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, que classifica até como "discreta" a atuação brasileira no impasse que já dura mais de três meses no país centro-americano.

Em entrevista ao Correio, ele defendeu plenamente a decisão de abrir as portas da embaixada em Tegucigalpa a Zelaya e seus seguidores. "Há muitas pessoas neste governo que, no passado, bateram em portas de embaixadas e foram recebidos. Então temos isto muito presente em nossa memória", compara Garcia, apesar de destacar que, neste caso, "não se configura plenamente" um asilo político.


O braço-direito de Lula em questões internacionais considerou "um pouco deslocado" o comentário do embaixador dos Estados Unidos na OEA, Lewis Amselem, que classificou como "irresponsável" a volta de Zelaya a Honduras. Ele ainda se referiu a Micheletti como "ditador", e disse que "apesar de a palavra dele não valer muito", é preciso se ater a ela quando o presidente de fato assegura que não invadirá a embaixada brasileira.


O representante dos EUA na OEA disse hoje que foi "irresponsável" a volta do presidente deposto a Honduras. De fato, os climas se acirraram bastante desde a sua volta. Como o governo brasileiro, que possui uma importante tradição diplomática, vê essa volta? Não foi, de fato, irresponsável, considerando a segurança da população?
Os ânimos estão acirrados desde a derrubada do presidente Zelaya. Este é o problema central: a ruptura da ordem democrática no país e o golpe de Estado. A decisão do presidente Zelaya foi tomada depois de esgotadas praticamente todas as chances de uma negociação ; muitas das quais, inclusive, eram até desfavoráveis ao presidente Zelaya, e que ele aceitou, como, por exemplo, a proposta do presidente Oscar Arias, da Costa Rica. No entanto, os golpistas se mantiveram numa intransigência total e o que eles estão tentando é empurrar esse tema até as eleições, para realizar eleições ilegítimas, que não serão reconhecidas nem pelo Brasil e nem pela maioria da comunidade internacional. Mais do que isso, essas eleições sim, realizadas nestas circunstâncias, vão mergulhar Honduras em uma situação mais grave do que a que temos hoje. Sinceramente, eu não quero analisar a decisão do presidente Zelaya, que foi destituído de suas funções e tentou mais de uma vez uma solução negociada ; que foi sistematicamente negada pelos golpistas. Querer concentrar nele as responsabilidades que são basicamente responsabilidades dos golpistas me parece uma postura equivocada.


O senhor consideraria legítima esta volta então?

Não se trata de a volta ser legítima ou ilegítima, o que foi ilegal e ilegítimo foi a saída dele. Ele foi retirado da sua casa de manhã cedo, ainda de pijama e com uma metralhadora na cabeça. Esta é a questão fundamental. Me parece que ficar discutindo agora a pertinência ou não da volta do presidente Zelaya é uma questão relativamente secundária. Aliás, é muito normal que ele sendo presidente do país, queira voltar a seu país e, inclusive, mobilizar a opinião pública mundial em favor do próprio restabelecimento da legalidade no país. Temos que nos ater basicamente à postura do governo golpista, que tem sido, efetivamente, o principal responsável e tem agido com uma intransigência enorme. Ontem, por exemplo, chegou uma delegação da OEA em Tegucigalpa e essa delegação que ia lá para discutir, negociar, foi retida e mandada de volta do próprio aeroporto. Hoje, você tem a confirmação de tudo aquilo que nós vínhamos dizendo há muito tempo: suspensão das garantias individuais, fechamento de jornais. Sinceramente, o comentário do embaixador norte-americano me parece um pouco deslocado, para dizer o menos.


É fato que o governo de Roberto Micheletti pretende ficar até as eleições de novembro no poder. Já Zelaya não aceita outra alternativa senão voltar ao poder para realizar as eleições. Que tipo de desfecho o governo brasileiro espera ver, uma vez que os dois lados, aparentemente, terão que ceder?
Exatamente que eles cedam. Até agora, a disposição em ceder foi vista da parte do Zelaya. Da parte do Micheletti, não houve nenhuma disposição em ceder. Acho que é chegado o momento de que isso ocorra e só se dará se houver uma intensificação da pressão internacional. Este governo é um governo sui generis, porque eu nunca vi um isolamento tão absoluto e tão completo. Na OEA, ele está absolutamente condenado, a União Africana e a União Europeia o condenaram unanimemente, ele foi condenado nas Nações Unidas, o que ele quer mais?


Ontem, o chanceler Carlos López ameaçou retirar a imunidade de embaixada brasileira se o ultimato não for atendido, o que significa que ela poderá ser invadida. O governo não vê isto com apreensão?
O ditador Micheletti disse que isso não significaria a invasão da embaixada brasileira. Apesar de a palavra dele não valer muito, de qualquer maneira, eu tenho que me ater a ela. E, evidentemente, se houvesse qualquer movimento nesta direção, ele estaria se metendo numa enrascada muitíssimo maior do que ele se manteve até agora. Evidentemente, isso significaria sanções muito rigorosas por parte não mais da OEA, mas do Conselho de Segurança da ONU.


Qual seria uma atitude do governo brasileiro neste caso?
Eu não gosto de comentar hipóteses, mas no caso de isso ocorrer, evidentemente nós recorreríamos ao Conselho de Segurança da ONU, como já fizemos quando começaram a se desenhar ameaças contra a embaixada brasileira. Só para lembrar, o Conselho de Segurança, na semana passada, fez uma crítica dura a essa decisão e nós continuamos recebendo manifestações de solidariedade. Ainda hoje, eu escutei o discurso da ministra das Relações Exteriores do México na Assembleia Geral das Nações Unidas de condenação ao Micheletti, de pedido que ele (o Zelaya) seja imediatamente restabelecido e de defesa da inviolabilidade da embaixada brasileira.


Desde que chegou, Zelaya tem incitado, a partir da embaixada brasileira, a população a cometer atos de "desobediência civil". O chanceler Celso Amorim já pediu para que ele parasse de se manifestar, mas é realmente possível conter este tipo de atitude de um presidente deposto que está disposto a voltar ao governo?
Quero deixar claro que eu não li o conjunto dos pronunciamentos do presidente Zelaya, mas salvo um que ele chamava à desobediência civil ; que, na maioria das vezes, se manifesta de uma forma pacífica ;, eu não vi declarações em que ele estivesse incitando a violência. Pelo contrário, vi algumas declarações em que ele se manifestava chamando a uma solução pacífica. Agora, nós, de qualquer maneira, solicitamos a ele ; e achamos que isso ocorrerá ; que se abstenha de pronunciamentos para não complicar a situação dele e da embaixada do Brasil.


Por que o Brasil se envolveu de maneira a se tornar um dos principais atores em um conflito em Honduras, país com o qual mantínhamos até então relações diplomáticas distantes e que representa menos de 0,05% do nosso comércio bilateral?
O Brasil não se envolveu, o Brasil foi envolvido. Tanto é assim que, no começo da crise, alguns até criticaram, dizendo que tinha sido uma participação exageradamente discreta. Quando houve aquela tentativa de ele voltar por avião, não havia nenhum diplomata brasileiro; nem presidente Lula e nem o ministro Amorim compareceram à reunião do Grupo do Rio na Nicarágua. Nós tivemos, portanto, uma participação solidária com o governo constitucional, mas discreta. O que houve foi que, no momento em que o presidente Zelaya decidiu pedir a proteção da embaixada brasileira, fomos colocados no centro dos acontecimentos.

Por outra parte, as nossas relações não só com Honduras, mas com a América Central de uma maneira em geral, têm sido muito mais próximas durante este governo. Gostaria de lembrar que Lula foi o primeiro presidente brasileiro a visitar Honduras, esteve duas vezes na Guatemala, foi à Nicarágua, à Costa Rica, ao Panamá. E nós temos, inclusive, interesse de não só estimular o comércio exterior, mas de implementar também mais investimentos naquela região. Nós tínhamos acordado anteriormente com o governo Zelaya a exportação de serviços para a construção de hidrelétrica, por parte de empresas brasileiras, e havia também um interesse muito grande de desenvolver a questão de biocombustíveis naquela região. Eu não acho que fosse uma relação tão distante porque América Central e o Caribe têm se aproximado muito do Brasil.


O senho disse que o Brasil "foi envolvido" nesta situação. O governo brasileiro se arrepende de ter cedido a embaixada para Zelaya e seus seguidores?
De maneira nenhuma, porque quando alguém bate à porta da embaixada brasileira, é recebido não só porque é uma norma internacional mas porque há muitas pessoas neste governo que, no passado, bateram em portas de embaixadas e foram recebidos. Então nós temos isto muito presente na nossa memória. A tradição do asilo político, ainda que não esteja plenamente configurada uma situação de asilo político, é uma tradição muito cara na América Latina que nós devemos preservar com muito cuidado.

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