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Meio milhão com Bento XVI

Vaticano comemora a presença em massa de fiéis no santuário da cidade de Fátima, no centro de Portugal. Papa ataca aborto e casamento homossexual e admite a existência de "ervas daninhas" no seio da Igreja

postado em 14/05/2010 07:00
Pelo menos 500 mil fiéis se deslocaram ontem à cidade de Fátima, a 147km de Lisboa, para receber o papa Bento XVI. Segundo o Vaticano, a reunião de tantos peregrinos representa um voto de confiança ao pontífice, no momento em que a Igreja Católica é atingida por uma série de denúncias de abusos sexuais de crianças cometidos por religiosos. ;O papa está muito contente e ficou muito emocionado com a presença em massa dos portugueses;, afirmou Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé, ao término da celebração. ;Quando podíamos pensar que o escândalo causado pelos abusos poderia enfraquecer a vitalidade e a atenção ao papa, não aconteceu assim;, ressaltou.

Para o porta-voz da Igreja em Portugal, padre Manuel Morujão, os cristãos quiseram mostrar ao líder religioso que ele é ;muito amado;. ;Os católicos sabem distinguir entre as exceções (os casos de pedofilia no clero) e a enorme maioria dos padres;, declarou. Muitos católicos passaram a noite em claro para guardar lugar e comemorar com Bento XVI a primeira aparição da Virgem Maria, em 13 de maio de 1917, a três pastores dessa cidade situada no centro de Portugal.

Embora a quantidade de fiéis na esplanada do Santuário de Fátima (1) não tenha sido confirmada por fontes independentes, as forças de segurança informaram que o local, com capacidade para 300 mil pessoas, estava lotado até nas áreas de acesso. Se comprovado, o número supera o de 400 mil peregrinos que, 10 anos atrás, presenciaram a visita do então papa João Paulo II ao santuário. Quando estava na cidade, o polonês beatificou Jacinta e Francisco, dois dos três pastores. Bento XVI orou ontem ajoelhado diante do túmulo dos beatificados e de Lúcia, a terceira pastora a quem Nossa Senhora teria revelado três segredos, considerados proféticos em relação à história do século 20.

Durante a cerimônia, o pontífice suplicou à Virgem para que a Igreja não ceda às ;seduções do mundo;. No momento da homilia, ele destacou que dirigiu-se até Fátima, onde chegou na última quarta-feira, para ;orar com Maria e os inúmeros peregrinos pela humanidade aflita por tantos sofrimentos;. O líder religioso, que conclui hoje sua visita de quatro dias a Portugal, alertou que as profecias da Virgem são uma mensagem ;contra o horrendo egoísmo das nações, das raças, das ideologias, dos grupos e indivíduos;.

Em outra mensagem, direcionada às igrejas alemãs reunidas em Munique numa jornada ecumênica, ele voltou a abordar o tema da pedofilia. ;Nos últimos meses, estivemos confrontados com novas revelações suscetíveis de arrebatar a alegria da Igreja, de obscurecê-la enquanto local de esperança;, declarou. ;Há ervas daninhas também no seio da Igreja e entre os que o Senhor alistou a seu serviço;, lamentou. ;Mas a boa semente não foi abafada pelo grão do mal.;

Desafios
Após a missa, o papa afirmou que o aborto e o casamento homossexual estavam entre os ;desafios mais insidiosos e mais perigosos; do mundo atual. ;As iniciativas voltadas para salvaguardar os valores essenciais da vida, desde sua concepção, e da família, fundamentada no casamento indissolúvel entre um homem e uma mulher, ajudam a responder a alguns dos desafios que, hoje, se opõem ao bem comum;, disse o pontífice, diante de representantes de organizações sociais de Portugal ; país que legalizou o aborto em 2007 e está prestes a promulgar o matrimônio gay. Os representantes o ovacionaram de pé.

Votada em fevereiro passado pela maioria esquerdista do Parlamento, a lei sobre o casamento entre homossexuais pode ser vetada pelo presidente, Aníbal Cavaco Silva, católico praticante. O veto remeteria a um segundo voto, dessa vez, definitivo. Porém, se a lei for aprovada, Silva deve promulgá-la antes do dia 17. O texto mantém a proibição de casais gays adotarem crianças.

1 - Visita indesejada
Em liberdade há quatro meses, Mehmet Ali Agca, o turco que tentou matar João Paulo II há 29 anos, pretendia estar em Fátima ontem, durante a visita do papa Bento XVI. Desistiu da ideia depois que o governo de Portugal se manifestou contra sua presença, ponderando, perante as autoridades turcas, que a ida seria inoportuna ;por considerações políticas e de segurança;. O papa João Paulo II disse que a Virgem de Fátima salvou sua vida quando Ali Agca disparou contra ele em 13 de maio de 1981, na Praça São Pedro, no Vaticano. João Paulo II o perdoou ainda no leito do hospital, onde se recuperava do atentado, e o visitou na prisão em 28 de dezembro de 1983.

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI

Igreja da SS.ma Trindade - Fátima
Quinta-feira, 13 de Maio de 2010

Queridos irmãos e amigos,

Ouvistes Jesus dizer: ;Vai e faz o mesmo; (Lc 10, 37). Recomenda-nos que façamos nosso o estilo do bom samaritano, cujo exemplo acaba de ser proclamado, ao aproximar-nos das situações carentes de ajuda fraterna. E qual é esse estilo? ;É ;um coração que vê;. Este coração vê onde há necessidade de amor e actua em consequência; (Bento XVI, Enc. Deus caritas est, 31). Assim fez o bom samaritano. Jesus não se limita a recomendar; como ensinam os Santos Padres, o Bom Samaritano é Ele, que Se faz próximo de todos os homens e ;derrama sobre as suas feridas o óleo da consolação e o vinho da esperança; (Missal Romano, Prefácio Comum VIII) e os conduz à estalagem, que é a Igreja, onde os faz tratar, confiando-os aos seus ministros e pagando pessoalmente de antemão pela cura. ;Vai e faz o mesmo;! O amor incondicionado de Jesus que nos curou há-de converter-se em amor entregue gratuita e generosamente, através da justiça e da caridade, para vivermos com um coração de bom samaritano.

É com grande alegria que me encontro convosco neste lugar bendito que Deus escolheu para recordar à humanidade, através de Nossa Senhora, os seus desígnios de amor misericordioso. Saúdo com grande amizade cada pessoa aqui presente e as entidades a que pertencem, na diversidade de rostos unidos na reflexão das questões sociais e sobretudo na prática da compaixão, voltada para os pobres, os doentes, os presos, os sós e desamparados, as pessoas com deficiência, as crianças e os idosos, os migrantes, os desempregados e os sujeitos a carências que lhes perturbam a dignidade de pessoas livres. Obrigado, Dom Carlos Azevedo, pelo preito de união e fidelidade à Igreja e ao Papa que prestou tanto da parte desta assembleia da caridade como da Comissão Episcopal de Pastoral Social a que preside e que não cessa de estimular esta imensa sementeira de bem-fazer em Portugal inteiro. Cientes, como Igreja, de não poderdes dar soluções práticas a todos os problemas concretos, mas despojados de qualquer tipo de poder, determinados ao serviço do bem comum, estais prontos a ajudar e a oferecer os meios de salvação a todos.

Queridos irmãos e irmãs que operais no vasto mundo da caridade, ;Cristo ensina-nos que ;Deus é amor; (1 Jo 4, 8) e simultaneamente ensina-nos que a lei fundamental da perfeição humana e, consequentemente, também da transformação do mundo é o novo mandamento do amor. Portanto aqueles que crêem na caridade divina têm a certeza d;Ele que a estrada da caridade está aberta a todos os homens; (Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Gaudium et spes, 38). O cenário actual da história é de crise sócio-económica, cultural e espiritual, pondo em evidência a oportunidade de um discernimento orientado pela proposta criativa da mensagem social da Igreja. O estudo da sua doutrina social, que assume como principal força e princípio a caridade, permitirá marcar um processo de desenvolvimento humano integral que adquira profundidade de coração e alcance maior humanização da sociedade (cf. Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 20). Não se trata de puro conhecimento intelectual, mas de uma sabedoria que dê sabor e tempero, ofereça criatividade às vias cognoscitivas e operativas para enfrentar tão ampla e complexa crise. Que as instituições da Igreja, unidas a todas as organizações não eclesiais, melhorem as suas capacidades de conhecimento e orientações para uma nova e grandiosa dinâmica que conduza para ;aquela civilização do amor, cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura; (Ibid., 33).

Na sua dimensão social e política, esta diaconia da caridade é própria dos leigos, chamados a promover organicamente o bem comum, a justiça e a configurar rectamente a vida social (cf. Bento XVI, Enc. Deus caritas est, 29). Consta das vossas conclusões pastorais, resultantes de reflexões recentes, formar uma nova geração de líderes servidores. A atracção de novos agentes leigos para este campo pastoral merecerá certamente especial cuidado dos pastores, atentos ao futuro. Quem aprende de Deus Amor será inevitavelmente pessoa para os outros. Realmente, ;o amor de Deus revela-se na responsabilidade pelo outro; (Bento XVI, Enc. Spe salvi, 28). Unidos a Cristo na sua consagração ao Pai, somos tomados pela sua compaixão pelas multidões que pedem justiça e solidariedade e, como o bom samaritano da parábola, esforçamo-nos por dar respostas concretas e generosas.

Muitas vezes, porém, não é fácil conseguir uma síntese satisfatória da vida espiritual com a acção apostólica. A pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado sobre a lei do mais forte, sobre o lucro fácil e fascinante, acaba por influir sobre o nosso modo de pensar, os nossos projectos e as perspectivas do nosso serviço, com o risco de esvaziá-los da motivação da fé e da esperança cristã que os tinha suscitado. Os pedidos numerosos e prementes de ajuda e amparo que nos dirigem os pobres e marginalizados da sociedade impelem-nos a buscar soluções que estejam na lógica da eficácia, do efeito visível e da publicidade. E todavia a referida síntese é absolutamente necessária para poderdes, amados irmãos, servir Cristo na humanidade que vos espera. Neste mundo dividido, impõe-se a todos uma profunda e autêntica unidade de coração, de espírito e de acção.

No meio de tantas instituições sociais que servem o bem comum, próximas de populações carenciadas, contam-se as da Igreja Católica. Importa que seja clara a sua orientação de modo a assumirem uma identidade bem patente: na inspiração dos seus objectivos, na escolha dos seus recursos humanos, nos métodos de actuação, na qualidade dos seus serviços, na gestão séria e eficaz dos meios. A firmeza da identidade das instituições é um serviço real, com grandes vantagens para os que dele beneficiam. Passo fundamental, além da identidade e unido a ela, é conceder à actividade caritativa cristã autonomia e independência da política e das ideologias (cf. Bento XVI, Enc. Deus caritas est, 31 b), ainda que em cooperação com organismos do Estado para atingir fins comuns.

As vossas actividades assistenciais, educativas ou caritativas sejam completadas com projectos de liberdade que promovam o ser humano, na busca da fraternidade universal. Aqui se situa o urgente empenhamento dos cristãos na defesa dos direitos humanos, preocupados com a totalidade da pessoa humana nas suas diversas dimensões. Exprimo profundo apreço a todas aquelas iniciativas sociais e pastorais que procuram lutar contra os mecanismos sócio-económicos e culturais que levam ao aborto e que têm em vista a defesa da vida e a reconciliação e cura das pessoas feridas pelo drama do aborto. As iniciativas que visam tutelar os valores essenciais e primários da vida, desde a sua concepção, e da família, fundada sobre o matrimónio indissolúvel de um homem com uma mulher, ajudam a responder a alguns dos mais insidiosos e perigosos desafios que hoje se colocam ao bem comum. Tais iniciativas constituem, juntamente com muitas outras formas de compromisso, elementos essenciais para a construção da civilização do amor.

Tudo isto bem se enquadra na mensagem de Nossa Senhora que ressoa neste lugar: a penitência, a oração, o perdão que visa a conversão dos corações. Esta é a estrada para se construir a referida civilização do amor, cujas sementes Deus lançou no coração de todo o homem e que a fé em Cristo Salvador faz germinar.

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