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Especialistas temem fracasso do acordo entre as Farc e o governo colombiano

Às vésperas do início do desarmamento das Farc, a ONU e a guerrilha acusam o governo colombiano de não oferecer segurança e de morosidade na construção dos acampamentos para os 6,9 mil rebeldes.

Rodrigo Craveiro
postado em 27/02/2017 08:00
Guerrilheiros das Farc a caminho de uma das 26 zonas transitórias de normalização: bandeira branca simbolizando a disposição em entregar armas

Eles chegaram de barco, a pé e de ônibus e atravessaram florestas densas até os acampamentos montados nas chamadas ;zonas transitórias de normalização;, os locais onde os 6.934 guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entregarão suas armas aos observadores da Organização das Nações Unidas (ONU). Um gesto crucial para pôr fim a mais de meio século de um conflito sangrento, que deixou mais de 260 mil mortos e expulsou de seus lares pelo menos 6,9 milhões de pessoas. De acordo com o governo de Juan Manuel Santos, a previsão é de que o desarmamento comece na próxima quarta-feira. ;A entrega de armamento físico será iniciada a partir de 1; de março, com 30% (das armas); em 1; de maio, outros 30%; e, em 1; de junho, 40%. Assim, serão entregues todas as armas;, declarou o general Javier Flórez, chefe do Comando Estratégico em Transição das forças militares, encarregado de temas pós-conflito.

[SAIBAMAIS]Uma das etapas mais importantes do acordo assinado em Havana esbarra em dificuldades. Jean Arnault, chefe da missão da ONU na Colômbia, enviou carta a Santos e às Farc na qual alerta sobre a falta de condições de segurança para a coleta de armas e denuncia que alguns dos acampamentos nas zonas transitórias foram montados de forma precária e em condições insalubres. Na quinta-feira passada, Bogotá congelou os bens da guerrilha avaliados em US$ 98 milhões, a maior parte, produto de atividades ilícitas, como o narcotráfico.

Em entrevista ao Correio, por e-mail, Ernesto Samper Pizano ; presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 e atual secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) ; lembra que o pacto firmado entre o governo e as Farc almeja a ;paz negativa;. ;É a ausência do enfrentamento armado, o silêncio dos fuzis. O que vem a seguir é passarmos do conflito ao pós-conflito, por meio da aplicação das normas da justiça transicional e da reconstrução dos tecidos social, econômico e político. Isso vai durar vários anos e custará mais de US$ 100 mil;, explica. No entanto, Samper alerta que a paz envolve um tema muito complexo. ;Algumas das frentes das Farc não se mobilizarão. Ao perder os benefícios do desarmamento, ficarão convertidas em organizações criminosas, como as que foram formadas pelos grupos paramilitares. E, assim, deverão ser combatidas pelo Estado.;

Compromisso

Especialista da Pontificia Universidad Javeriana, em Bogotá, Mauricio Romero Vidal adverte que o governo ;brinca com fogo;, ao não adequar as 26 zonas transitórias. ;O que os guerrilheiros e seus subordinados podem estar pensando? Que o governo não cumprirá com o acordo, pois nem sequer pôde construir acampamentos mais ou menos aceitáveis para alojar 6,9 mil combatentes;, afirma à reportagem, ao admitir que funcionários do governo supõem que, por serem de origem humilde, os guerrilheiros não deveriam exigir tanto. ;Bogotá tinha que mostrar o seu compromisso e sua capacidade, ao cumprir com o acordado, no lugar de dar desculpas sobre dificuldades e outros obstáculos;, defende.

Para o estudioso, a paz depende de resultados concretos da negociação aos olhos dos combatentes. ;Os comandantes das Farc prometeram não voltar atrás e tomaram a decisão de depor as armas, haja o que houver. Se os guerrilheiros de patente média e os combatentes rasos não cumprirem com as medidas, os incentivos para que prossigam na ilegalidade serão altos, assim como as chances de se unirem a outros grupos dissidentes ou do narcotráfico;, diz Vidal.

Vicente Torrijos, professor de ciência política da Universidad Javeriana (em Bogotá), adverte que tem havido ;muita improvisação;, tanto por parte do governo, quanto das Farc. ;Há o agravante de que a população percebe que a insegurança se multiplicou, devido às ações das Farc;, comenta.

O analista afirma que a missão da ONU precisou moderar a linguagem, após se mostrar ;inexplicavelmente complacente; com as Farc. ;O governo assumiu compromissos com as Farc que superam suas capacidades. Os rebeldes vão se valer disso para recrudescer o seu espírito insurgente.;

Pontos de vista

Lentidão e neficiência
(Por Mauricio Romero Vidal)

;O ponto central é a entrega das armas a uma comissão internacional, que tem como prazo 1o de junho. O cumprimento do prazo depende da comissão tripartite ; ONU, governo e Farc ; e da obediência aos compromissos. É crucial que o governo mostre mais eficiência. Ele tem sido lento, e faltou estratégia comunicativa para explicar o que ocorre. Os funcionários do governo tendem a não levar em conta as organizações sociais que se encontram no território.;

Especialista da Pontificia Universidad Javeriana (em Bogotá)

Renúncia força
(Por Vicente Torrijos)

;Algumas células se separaram das Farc e seguirão reproduzindo a violência por conta própria. Mas também é certo que as Farc são uma organização revolucionária habituada às lógicas do ;braço político; e do ;braço armado;. Enquanto os guerrilheiros não demonstrarem que deixaram de intimidar, de perseguir e de deslocar forçosamente a população, os acordos negociados em Havana serão questionados e, cedo ou tarde, terão de ser revisados.;

Professor de ciência política da Universidade del Rosário (em Bogotá)

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