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Descumprimento de promessas Pós-Apartheid desperta fúria na África do Sul

Hoje, 13% dos 55 milhões de sul-africanos moram em casas miseráveis, confirmam as estatísticas

Agência France-Presse
postado em 31/05/2017 16:37
Ennerdale, África do Sul - À primeira vista, Ennerdale parece um subúrbio modesto, porém decente, de casas de tijolos de cor ocre, ou vermelha, nos arredores de Soweto, a sudoeste de Johannesburgo. No interior, chama atenção a miséria, que tem motivado protestos.

Os móveis são escassos, assim como a água e a eletricidade, e o lixo se amontoa sem que ninguém o recolha. Às vezes, mais de dez pessoas vivem em um único cômodo.

Seus 17 mil habitantes não aguentam mais. No começo de maio, soltaram sua ira nas ruas. Em Ennederdale, sucederam-se queima de pneus, confrontos com a polícia e saques nas lojas que se propagaram para outros bairros pobres da maior cidade da África do Sul.

No país, essas espirais de violência urbana, denominadas "distúrbios pela melhora dos serviços públicos", são diárias, ou quase. Refletem os fracassos da "nação arco-íris" 25 anos depois da queda do Apartheid.

Celine Brown nasceu há 21 anos em uma casa de Ennerdale, com cancela de ferro, um pedaço de terra e um quarto sombrio com chão de cimento onde faz frio. Na parte de trás, um barracão de madeira. "Veja onde moramos", aponta a jovem. "Dez aqui e nove na cabana construída atrás do pátio. Todos da mesma família", descreve Celine.


"Desumano"

Pai, mãe, irmão, filha, netos, ou primos, três gerações vivem confinadas na propriedade, sem água potável, ou luz. E sem emprego. "Tentamos pedir uma moradia social. Esperamos há três anos", lamenta Celine Brown. "Talvez não nos escutem. Talvez não entendam nossa situação, porque suas vidas são melhores", acrescenta.

A algumas ruas dali, o panorama se repete. "Como pode ver, não tem banheiro. Nós nos sentamos sobre o cubo no interior e o esvaziamos ali", protesta Valerie Mabimbeli, de 64 anos, mostrando o vazadouro que faz as vezes de jardim. Queremos casas de verdade", exclamou.

"Não podemos viver 30 anos sem vaso, sem água, sem eletricidade (...) É injusto e desumano", desabafa Marge Cass.

"Se não há trabalho, se não há moradia, nosso filhos não acordarão dizendo ;quero encontrar um trabalho;, ou ;quero ir ao colégio;", argumenta a porta-voz dos moradores de Ennerdale, advertindo que esse quadro "é a porta aberta à criminalidade".

Com um índice de desemprego de mais de 25% e um crescimento abalado, a falta de moradia decente é um dos sintomas do mal que corrói a economia sul-africana desde a crise financeira de 2008.

Em Ennerdale, não se constroem casas novas há 30 anos. No poder desde 1994, o Congresso Nacional Africano (ANC) fez progressos espetaculares no campo da infraestrutura, mas o recente declínio econômico apagou parte deles.


"Bomba-relógio"

Hoje, 13% dos 55 milhões de sul-africanos moram em casas miseráveis, confirmam as estatísticas.

O vice-presidente Cyril Ramaphosa admitiu a problemática. "Embora a África do Sul seja mais próspera (...) - disse - não criamos riqueza suficiente e emprego para acabar com a pobreza e o desemprego", reconheceu.

O governo prometeu ajuda. "Não somos insensíveis a seus problemas", declarou a ministra da Habitação, Lindiwe Sisulu.

Mestiços com frequência, os moradores dessas comunidades questionam o governo, acusando-o de discriminação.

"Nesses bairros, há mais droga e criminalidade, porque economicamente o governo não os ajudou tanto quanto nos bairros negros", avalia Jerome Lottering, um dos líderes da revolta do distrito Eldorado Park. "Estamos sentados sobre uma bomba-relógio" - ameaça ele - e, "se nada for feito rapidamente (...), este país vai explodir."

A especialista Gabriela Mackay, do Centro de Análise de Risco (CRA), estima que "não é um problema de raça", mas "as pessoas acreditam que seu voto não conta e, então, lotam a rua, queimam e destroem para serem ouvidas".

Em frente à casa decrépita de sua irmã, Marge Cass não espera nada das eleições gerais de 2019. Independentemente do resultado, está convencida de que outros distúrbios vão estourar.

"Somos cidadãos aqui, votamos aqui, mas nada muda (...) Que outra coisa podemos fazer?", questiona, sem esperança.

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