Politica

Joaquim Falcão critica foro privilegiado: "Só 3% foram condenados"

Diretor da Faculdade de Direito da FGV no Rio de Janeiro e chefe do programa Supremo em Números afirma que a medida contribui para a impunidade. Segundo ele, 16 parlamentares de 500 processados foram punidos nos últimos 27 anos

Eduardo Militão
postado em 06/11/2016 06:00

Quem vai decidir mudar a Constituição são os congressistas que detêm esse privilégio. Por que iriam abrir mão dele? Por que o Congresso votaria contra si próprio? Assim como não existe almoço grátis, não existe voto

O foro privilegiado de políticos, ;uma proteção constitucional que se deturpou;, produziu uma impunidade numérica. Só 16 dos mais de 500 parlamentares processados no Supremo Tribunal Federal, entre 1988 e o ano passado, foram condenados por crimes contra a administração pública. Trata-se de um índice de 3%. Quem fala é o professor Joaquim Falcão, diretor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro, que coordena o projeto Supremo em Números, trabalho de análise da atuação da corte máxima brasileira. ;As autoridades ficam fora do alcance da lei, sob a aparência de que estão dentro;, afirmou ele em entrevista ao Correio. ;Um paradoxo antidemocrático.;


De acordo com Falcão, os instrumentos usados pelo STF e outros tribunais para compensar a demora não funcionam. Um deles é a criação de juízes instrutores, que fazem as tomadas de depoimentos e decidem despachos mais simples. Mas o voto pela condenação ou absolvição continua sendo dos ministros. ;No processo penal, o ideal é que o juiz acompanhe a produção desta prova para ir formando a convicção.;


O professor da FGV diz que os políticos buscam o benefício, porque isso lhes é favorável, como aconteceu com os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva. ;Dilma tentou dar a Lula o foro privilegiado, convidando-o para ministro. Outros governos fazem um upgrade, transformam algo em ministério e o ocupam com quem precisa de foro privilegiado. Outros defendem foro privilegiado para gestores passados.;


Falcão diz que o STF tem o costume de concentrar em si as decisões e o poder. ;A trajetória do Supremo tem sido centralizadora. Mesmo diante de mais de 60 mil processos em estoque, a maioria não quer abrir mão de nada.; Falcão rechaça a crítica de que os órgãos colegiados são mais independentes às pressões do que os juízes de primeira instância. ;A independência de um magistrado não se mede pela instância em que atua. Estes novos juízes e procuradores evidenciam isto.;

O foro privilegiado torna os cidadãos diferentes no seu tratamento?
Estima-se que temos 22 mil autoridades com foro privilegiado. Nem os pró-foro defendem tanto exagero. O foro foi decisão da Constituição de 1988. Um pouco de história nos ajuda a compreender. Como o autoritarismo não respeitava a hierarquia das leis, decreto podia valer mais do que lei, grupos, classes e corporações procuraram constitucionalizar seus direitos na Constituinte. Torná-los imutáveis. Inclusive a burocracia política e administrativa do Estado. Tiveram sucesso. Para exemplificar, nossa Constituição menciona a palavra trabalhador 24 vezes. O termo servidor público, mais do que o dobro, 56 vezes. Na constituição alemã, ;public servant; aparece apenas 13 vezes. Na portuguesa, 8. Na espanhola, 3. Na argentina, 1. Pior. Criou-se um fast track entre funcionários e o Supremo inédito no mundo. As ações sobre funcionalismo público são as que mais cresceram no STF. Por isso, mudar o regime de funcionalismo público é difícil. Não se trata, pois, apenas de discussão abstrata sobre igualdade. Mas de uma proteção constitucional que se deturpou. Produziu impunidade. As autoridades ficam fora do alcance da lei, sob a aparência de que estão dentro. Um paradoxo antidemocrático.

E ele é a causa principal da demora nos processos?
Pesquisa da FGV de São Paulo de 2016, sobre o índice de confiança da Justiça brasileira, revela que 71% dos brasileiros não confiam no Judiciário. Esta ;desconfiança; mostra-se constante. Sempre me pergunto o motivo. Acredito que a desconfiança se deve não por culpa da Justiça que se produz, mas da Justiça que deveria ser produzida. Processos demoram independentemente de foro privilegiado. Foro privilegiado não é a única, nem a principal causa. Mas processos que tramitam diretamente nos tribunais (competência originária) tendem a uma tramitação diferente e mais arrastada. Como alerta a professora Silvana Batini, da FGV, os tribunais não têm estrutura para fazer instrução processual, pois sua função principal é revisional. O relator de um processo desses costuma terceirizar a oitiva das testemunhas, produção de provas etc. para um juiz de primeiro grau (cartas de ordem). No processo penal, o ideal é que o juiz acompanhe a produção desta prova para ir formando sua convicção.

O foro é causa de impunidade?
Não sou eu quem diz. É a experiência brasileira. É a nossa realidade constitucional. De 1988 até 2015, apenas 16 dos mais de 500 parlamentares investigados e processados no Supremo foram condenados por crimes contra a administração pública. Apenas em 2010, pela primeira vez, o STF condenou, com decisão passada em julgado, uma autoridade com foro privilegiado, o ex-deputado federal mineiro José Fuscaldi Cecílio (Tatico). A PEC 358/05 quer estender ainda mais o foro privilegiado. Caso aprovada, permitirá o arquivamento de mais de 10 mil processos contra autoridades ainda não decididos. Políticos querem se proteger com o foro privilegiado por meio de diversas táticas. Dilma tentou dar a Lula o foro privilegiado, convidando-o para ministro. Outros governos fazem um upgrade, transformam algo em ministério e o ocupam com quem precisa de foro privilegiado. Outros defendem foro privilegiado para gestores passados. São múltiplos os caminhos de deturpação da responsabilidade.

O que deve ser modificado em relação ao foro privilegiado?
Quando há consenso no direito ocidental, não devemos inovar. É o melhor indicador de que está funcionando bem. O consenso global sobre foro privilegiado é claro: não existir. Só em raros casos ligados à representação da nação. É o caso dos Estados Unidos, em que há prerrogativa de foro para o presidente americano, embaixadores e cônsules. Na Itália, a prerrogativa também é somente para o presidente. A condição também é limitada em países como França e Alemanha.

O senhor defende a extinção completa ou apenas a redução?
O problema não é mais o que se deve defender. O desafio é outro. Quem vai decidir mudar a Constituição são os congressistas que detêm esse privilégio. Por que iriam abrir mão dele? Por que o Congresso votaria contra si próprio? Assim como não existe almoço grátis, não existe voto contra si mesmo grátis. São poucos que, como Deltan Dallagnol (coordenador da Lava-Jato no Ministério Público no Paraná), afirmam: ;Tenho foro privilegiado e não tinha que ter;. Não seria o melhor dos mundos, mas uma regra de transição entre o presente com foro e o futuro sem foro poderia ser um esforço a ser tentado. O outro desafio é que se retira poder do Supremo. E a trajetória do Supremo tem sido centralizadora. Mesmo diante de mais de 60 mil processos em estoque, a maioria não quer abrir mão de nada. Por isso, concordo com o ministro Celso de Mello: deve-se confiar mais no juiz de primeira instância. Sem uma política de descentralização processual, o Supremo se afogará no seu próprio poder.

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