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Futuro da meada

A paciente arte de alinhavar fios de algodão com a ajuda de grandes agulhas se tornou um exemplo de elegância e de sustentabilidade. Tricô e crochê são tendências que vieram para ficar

postado em 14/10/2010 19:19

Imagens do trabalho de Thais Ueda

Ela pega as agulhas e as linhas, senta-se na velha cadeira de balanço da sala e começa a alinhavar mais uma peça colorida para quando a primeira brisa do inverno chegar. Parece até coisa da vovó, mas não é bem assim. Graças a mãos prendadas, a arte do crochê e do tricô se reinventa e encanta as novas gerações. Hoje o ponto a ponto está nas passarelas, na web, no cinema, na cultura urbana.
O inverno passado, por exemplo, foi todo ;tricotado;. Veja o caso do brasileiro Lucas Nascimento. Em sua estreia no Fashion Rio, em janeiro passado, o estilista radicado em Londres mostrou talento em peças trabalhadas para as grifes 2nd Floor e Amapô. Mas a artesania não se limita à estação mais fria do ano. Na semana de moda de Milão, em setembro último, a Prada desfilou sua colorida aposta para o verão europeu 2011: tricô e mais tricô.
A receita se repete nas telonas e nas livrarias. No ano passado, causou sensação nos EUA o documentário/livro Handmade nation (Ed. Chronicle Books), produzido por Faythe Levine. Trata-se de um mapeamento abrangente de costureiros, bordadeiros, crocheteiros e tricoteiros atuantes no país. Para recolher dados, a diretora percorreu 30 mil quilômetros e visitou um total de 15 cidades, entrevistando, fotografando e filmando criadores que mesclam a tradição do trabalho manual com a estética moderna.
E não para por aí; O movimento de arte urbana conhecido como Yarn Bombing (Bombardeio de Fios) vem colorindo ruas e monumentos nos quatro cantos do mundo. Espécie de grafite em tricô, a manifestação conta com o apoio de diferentes artistas, como Magda Sayeg, responsável pelo projeto Knitta Please ; algo como Tricô, por favor. ;Nossa ideia é tornar a rua mais aconchegante, dando um toque pessoal;, explica.
As técnicas manuais de costura, é preciso lembrar, ganharam um empurrão extra com a onda verde. Tricotar é considerado uma prática sustentável e politicamente correta, que valoriza os saberes tradicionais e o uso racional da matéria-prima. A unicidade das peças alinhavadas na mão, é claro, também se tornou um lucrativo chamariz. Assim, jovens habilidosas com as agulhas e os novelos não tardaram a reivindicar o status de designer de tricô.

Pontos de uma rede

A paciente arte de alinhavar fios de algodão com a ajuda de grandes agulhas se tornou um exemplo de elegância e de sustentabilidade. Tricô e crochê são tendências que vieram para ficar

Da sua casa, em Águas Claras, a técnica em enfermagem Elaine Tripiano, 35 anos, atualiza há quatro anos o primeiro blog-escola de crochê do país: http://elainecroche.blogspot.com. Entre informações e fotos de cachecóis, vestidos e acessórios, as aulas em vídeo da professora fazem muito sucesso no Youtube desde julho de 2006. ;Já são 700 vídeos com 30 milhões de acesso;, comemora o marido Hebert Ramthum, 47 anos, advogado. É ele quem filma as impecáveis mãos da esposa, retocadas por esmaltes de cor escura ; vermelho e roxo são os favoritos. Enquanto ela faz e ensina o ponto pipoca e o ponto segredo, o marido também despista a gata Gueby, que às vezes pula em cima da dona.
Estão atentos às dicas da professora alunos do Brasil ao Japão. Até mesmo celebridades, como a cantora Marisa Monte, não perdem uma aula. ;Fiquei sabendo por uma jornalista que ela assiste aos meus vídeos e que faz crochê comigo há bastante tempo;, orgulha-se Elaine. Crocheteira de mão cheia, a técnica em enfermagem hoje dedica-se unicamente ao crochê e ao tricô, mas não se deixa cegar pela fama. Pelo contrário. Motivo de felicidade mesmo para essa paranaense radicada em Brasília é saber que pessoas de todas as idades e de diferentes partes do mundo podem dominar a técnica que aprendeu com a avó.
Crianças inclusive. Elas ainda não sabem escrever direito, mas falam para a professora que estão gostando de aprender. ;Teve também uma menina de Senegal, auxiliada por uma voluntária que falava português, que aprendeu a fazer uma bolsa para ir à escola. Foi emocionante;, recorda. Perceber que o alcance da internet ultrapassa fronteiras e auxilia pessoas carentes de outras partes do mundo é uma das maiores alegrias de Elaine.
Mãe de Melody, de apenas sete meses, ela só deixa as agulhas de lado para cuidar da filha. Mas assim que o bebê dá um cochilo, lá vai Elaine começar a tricotar ou fazer crochê. ;Quando eu pego na linha e na agulha para fazer uma peça, eu relaxo. Também faço crochê com minhas amigas e a minha cunhada quando elas vêm aqui em casa. Ficamos sentadas, trocando receitas, ideias; Tricotando, literalmente.;

De prosa, linhas e agulhas

Dedicada às agulhas, Elaine Tripiano cultiva fãs de todo o mundo

Nas tardes de sábado, o programa das mulheres na família de Isabela Bandeira Andrade, 23 anos, já está definido. Avós, mães, tias, sobrinhas e primas sentam-se numa roda para conversar e tricotar. Bisneta de Seu Quinca, artesão pioneiro na capital, Isabela aprendeu com a mãe a fazer a primeira peça de crochê (um porta-níquel) quando tinha apenas oito anos.
Ainda hoje, dona Celina ensina à filha novas técnicas e pontos para criar aquilo que a jovem admira nas revistas e no sites de moda. ;Sempre que vejo algo diferente, mostro para minha mãe. Ela pega o desenho, faz e me ensina. Fazemos cachecol, tocas, colares, cintos; e, agora, estamos fazendo uma pulseira de crochê com corrente;, conta, feliz com a última invenção.
Única no grupo de amigas que sabe fazer crochê e um pouco de tricô ; ;porque acho muito mais difícil;, diz Isabela ;, a jovem não perde tempo quando precisa enfrentar uma fila de espera. Dentro da bolsa, carrega uma outra, menor, só que com agulhas e diferentes linhas. ;Nunca se sabe;, conta, prevenida. E lá vai ela fazer crochê na antessala do dentista, no pátio da faculdade durante o intervalo da aula, ou mesmo numa viagem de avião. ;Já teve uma pessoa ao meu lado que falou que isso era coisa de vovó;, lembra, sem dar bola para o comentário.
Já em casa, o momento do crochê é dedicado à relação mãe e filha. ;Antes de ir para o trabalho, após o almoço, sento no sofá com minha mãe, fazemos crochê e botamos o papo em dia. Depois da conversa, temos muitas coisas pronta;, alegra-se. Aprendeu também com a tia, a não deixar passar em brancas nuvens um episódio de novela. Sempre dá para assistir um capítulo com um novelo no colo e uma agulha na mão.
Formada em História pela Universidade de Brasília e estudante de moda no Iesb, Isabela tem orgulho da arte que aprendeu com a mulheres da família. Quando pensa na importância do crochê logo liga o assunto aos conteúdos de sala de aula. ;Na moda, na história, crochê e tricô são processos que valorizam um saber próprio também do Brasil. Nosso artesanato é muito rico;, sai em defesa. Para a jovem estudante e crocheteira, a técnica preservada pela família, de mãe para filha, não deve se perder.

Plantando crochê em vasos

Em parceria com a mãe, Isabela Andrade observa tendências e cria peças de crochê

Ficar em frente do computador perdeu a graça para a designer gráfica Thais Ueda, 33 anos. Dedicar-se ao crochê foi a ideia que teve para driblar uma rotina desgastante. ;Aprendi a técnica numa reunião de blogueiras que queriam fazer trabalhos manuais. Nunca tinha feito crochê até então e me apaixonei;, conta. No ateliê, ela inventa novos vasos com cactus ;para trazer um pouco de verde para o ambiente, mas de uma forma diferente;, define, e cupcakes de lã, de comer com os olhos. Este e outros mimos únicos, feitos de linhas multicores, ela vende pelo site www.crochetjardim.com.br. Agora sim, Thais está contente com a mudança de carreira e de vida. ;Saí da rotina de acordar às 7h30, pegar trânsito, trabalhar horas extras, estar sempre cansada;. Realizada, Thais ainda filosofa: ;Mesmo seguindo uma receita, uma peça nunca será igual a de outra. Acho que as coisas e a vida são assim: cada pessoa imprime seu estilo.;

Costurando a cidade
Imagine passear pelo centro da cidade e perceber que o busto de cimento que homenageia um sisudo general ganhou um colorido gorro para adorná-lhe a cabeça. Algo, no mínimo, muito esquisito, não? Mas essa é a proposta de uma nova intervenção artística vista pelas ruas e em monumentos dos Estados Unidos e da Europa. Chamada de Yarn Bombing (em português, Bombardeio de Fios), essa arte urbana ganhou seguidores pelo mundo.
Como se fossem grafite de linhas coloridas, a manifestação arranca sorrisos de quem se depara com a quebra da seriedade de construções de ferro e cimento, enfeitadas, agora, por peças de tricô. Na cidade de Austin, estado do Texas (EUA), a norte-americana Magda Sayeg é uma das criadoras do movimento Knitta Please (Tricô Por favor, numa livre tradução). Mudar a concepção de que no espaço urbano somos meros coadjuvantes é uma das intenções da autora da intervenção que pode ser conferida no site http://knittaporfavor.wordpress.com. A ideia teve origem em 2005 e já vestiu o concreto de cidades dos Estados Unidos, além de países como Holanda, Suécia, Austrália e China. Em entrevista por e-mail à Revista do Correio, Magda explica a proposta.

Uma breve aulinha
"No crochê, você trabalha com uma única agulha e, no tricô, você usa duas agulhas compridas ou agulhas circulares, mas sempre duas. A agulha do crochê tem um gancho na ponta para você puxar a linha. Nesse caso, a mão que fica livre é um suporte para aquela que segura a agulha. Por serem duas técnicas diferentes, os pontos também não são parecidos. No crochê, a corrente é a base para tudo. Depois, vem o meio ponto, ponto baixo, ponto baixíssimo, que é usado para finalização de carreiras. Ponto pipoca, ponto alto, ponto alto duplo, leques e por aí vai uma sequência. O crochê é uma combinação de pontos, mas você sempre vai ter a origem, que é a corrente para iniciar qualquer peça, e a finalização, que é o ponto baixíssimo. O final da carreira é a conclusão de uma parte da peça, porque o crochê é trabalhado em carreiras. Cada carreira finaliza com um ponto baixíssimo. Já no tricô, você sempre trabalha em carreiras de vai e volta. Particularmente, acho o crochê mais fácil para quem quer começar. Além de você trabalhar com uma agulha só ; a maioria das pessoas têm medo de manipular duas de uma só vez ; o crochê é mais barato, uma vez que tricotar leva mais tempo e dá mais trabalho. Ou seja, a peça final do tricô também fica mais cara. Enquanto você faz uma peça de crochê num dia, pode-se levar o triplo de tempo para fazer uma peça de tricô."
(Elaine Tripiano, professora de crochê e de tricô e criadora do blog http://elainecroche.blogspot.com)

Veja também
- No http://yarnbombing.com, o movimento de bombardeio de fios ganha repercussão mundial. Imagens e informações sobre grupos e pessoas que aderiram à intervenção urbana podem ser encontrados no site, além do livro Yarn Bombing ; The art of crochet and knit grafitti.

- A blogueira brasileira do Knit Knit All Time (http://nitnit.wordpress.com) atualiza o site com novidades sobre o tricô e o crochê na moda e nas artes. Há dois anos, ela defende o tricô com unhas e dentes e acredita que o trabalho manual conquistar cada vez mais jovens.

- Em outubro, a marca Kenzo promete esquentar os japoneses, europeus e norte-americanos no inverno do hemisfério norte. A grife resgatou uma peça dos anos 1970 e vai vender ; nas lojas e pela internet ; um kit para que o comprador possa tricotar a peça.

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