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Flores em meio à poeira

Naturalmente belas, as mulheres do país resistem às adversidades com coragem e renovam a autoestima com pequenos cuidados pessoais. Tranças, penteados, unhas pintadas e acessórios ajudam a colorir a paisagem haitiana, ainda esmaecida pelo terremoto ocorrido há um ano

postado em 04/02/2011 17:55

No acampamento de Jean-Mari Vicent, Alice confia os cabelos a uma das filhas A permanente nuvem de poeira que acinzenta a paisagem de Porto Príncipe desafia diariamente a vaidade das haitianas. Esse obstáculo, no entanto, é o menos complicado para essas mulheres, que já deixaram a fragilidade de lado para enfrentar as dificuldades de sobreviver em uma cidade devastada pela pobreza e por catástrofes, como o terremoto ocorrido há um ano. Bonitas por natureza, elas não dispensam o cuidado com pele, cabelos e unhas. São elas que dão vida, com vestidos e apliques coloridos nos cabelos, à capital que ainda exibe seus destroços pelas ruas.

Uma cor de esmalte em cada dedo, até a metade da unhaA vaidade dessas mulheres dribla o lixo acumulado nas calçadas, a ausência de saneamento, a falta de uma casa para morar. No acampamento de Jean-Marie Vincent, um dos mais de 160 assentamentos de desabrigados de Porto Príncipe, não é preciso procurar muito para encontrar quem tenha entre as inúmeras preocupações também o cuidado com a beleza. Alice Jaqueline, 42 anos, mãe de cinco filhos, perdeu o marido no terremoto de janeiro de 2010 e está desempregada. A ajuda que recebe de doações é o que sustenta a família, abrigada há um ano em uma pequena tenda. Mesmo assim, existe a preocupação de nunca estar desarrumada. Alice se produz com as roupas que tem, e entrega o cabelo a uma das filhas. ;Não tem como ficar sem isso também;, justifica.

As mais novas vão além. Há quem alise os cabelos com ferro quente, outras assumem o visual afro com tranças elaboradas e fitas coloridas. A pele é tratada com cremes doados, ou mesmo comprados por um preço não tão barato em pequenas vendas dentro do próprio acampamento. ;Estamos sempre com gloss também;, admite Sofine Josef, 16, que compartilha a diversão em se arrumar com a amiga Renia Alexor, 22.

Esperança renovada
As chamadas rubans, fitinhas usadas nos cabelos, são o adereço favorito das meninasOs uniformes coloridos e sempre limpos chamam a atenção em meio à pilhas de lixo e entulho espalhadas pela cidade. A caminho da escola, as crianças haitianas exibem um visual impecável, da cabeça aos pés. No caso das meninas, a graça se concentra ainda mais nos cabelos, cuidadosamente enfeitados com fitas coloridas ; chamadas de ruban ;, laços, trancinhas e pequenos coques. As cores dos adornos podem combinar com o uniforme, ou simplesmente se misturar em um belo arco-íris que encanta os visitantes.

O zelo pela aparência dos pequenos rumo à escola é a forma mais pura de demonstração do quanto os haitianos valorizam o desenvolvimento de seus filhos. Na maioria das vezes, são os próprios pais que fazem questão de levar, pela mão, as crianças até o portão do colégio. ;Foi a primeira coisa que me tocou quando eu cheguei ao Haiti. Apesar de toda a situação de pobreza, você não vê uma criança ir desarrumada para a escola. Isso mostra a importância que eles dão para os estudos;, lembra o militar brasileiro Luís Sarmento Vieira, que passou seis meses servindo na Missão de Paz no país.

Nos acampamentos de desabrigados, as crianças não fogem à regra. Até nas creches e escolas improvisadas em tendas, os pequenos ; muitos deles órfãos do terremoto ; estão sempre com seus uniformes e, as meninas, de cabelos enfeitados. É a forma que os haitianos encontraram de valorizar a única oportunidade que vêem para crescer. Apostar na educação de suas crianças é se agarrar à esperança, que hoje parece só existir entre elas, de que o Haiti ainda vai melhorar.

Um pequeno oásis
Naomi e a filha Deborah tocam há cinco anos um concorrido salão de beleza em Pétion-VilleFora dos acampamentos, onde a vida volta mais rapidamente à normalidade, a grande quantidade de salões de beleza evidencia a importância da vaidade para as haitianas. Naomi Jean-Baptiste, 33 anos, percebeu que poderia investir em beleza e, em 2006, abriu um salão próximo ao bairro de Pétion Ville, onde vivem os haitianos mais abastados. Com a filha Deborah, 17, hoje ela toca o pequeno estabelecimento, sempre lotado nos fins de semana. A maior procura é por penteados, permanentes e escovas. Os longos apliques coloridos também fazem sucesso. ;As haitianas gostam muito de ficar bonitas, não só para as festas, mas para o dia a dia;, afirma Naomi. Algumas frequentam o salão simplesmente para lavar os cabelos e hidratá-los, o que muitas vezes não é tão simples de se fazer em casa.
É o caso de Luc Marlene, 31, que, numa tarde de terça-feira pintava as unhas ; uma de cada cor ; no salão de Naomi. ;O meu marido gosta quando eu me arrumo. É um ritual por mim e para ele;, confessa. O movimento na salão é maior no mês de dezembro, por conta das festas de fim de ano, e em abril e maio, época das cerimônias de primeira comunhão, o ritual de passagem mais importante para a maioria católica do Haiti.

Em um país vulnerável a epidemias causadas pela sujeira acumulada, onde um surto de cólera já matou milhares nos últimos meses, Naomi tem mais uma preocupação: lavar os cabelos das clientes só com água tratada com cloro e esterilizar todos os equipamentos de manicure com álcool e água fervente. Tudo para que, em seu salão, as haitianas encontrem um oásis em meio ao caos ; onde é possível recuperar a autoestima e sair renovada para enfrentar a dura rotina.

* A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa

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