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No túnel do tempo

Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia

postado em 24/03/2011 15:38

Sucesso do cinema nos anos 1980, Em algum lugar do passado mostra o personagem de Christopher Reeve envolto nas tramas do tempo. Ao se hospedar num tradicional hotel de Chicago, ele se apaixona pela foto de uma atriz que julga ter conhecido em outra época. Por meio de hipnose, ele volta à década de 1910, mas sabe que logo a viagem no tempo deve terminar. O roteiro, desenvolvido por Jeannot Szwarc, encaixa-se como metáfora para traduzir a nostalgia tão presente nos dias de hoje. Basta observarmos diversos grupos de pessoas nas ruas ; veremos topetudos à Elvis Presley caminhando lado a lado com hippies de flores na cabeça, blackpowers pregando o som de James Brown e jovens de calças coloridas e tênis vans se reunindo para jogar Atari.

Todos têm em comum uma característica: acreditam que o passado é mais divertido que o presente. Alguns até fantasiam o que ficou para trás e acreditam na hipótese de que, se tivessem vivido em outras décadas, teriam sido bem mais felizes. Esse é o caso do jovem Wagner Lutterbach, de 24 anos, que idealiza as últimas duas décadas do século 20. Para a psicóloga comportamental Paula Silva, essa devoção ao passado pode ser prejudicial. ;Não é apenas ficar triste ou reflexivo, a nostalgia pode causar isolamento social e prejuízo emocional;, explica.

Mas a nostalgia também tem lá seu lado positivo. Quando as pessoas se juntam para compartilhar momentos do passado, relembrar brincadeiras, modismos, filmes e outros assuntos ou quando, simplesmente, tendem a seguir o estilo retrô. Caso de muitos adultos saudosistas e de jovens cada vez mais nostálgicos. Para esses dois grupos, o que passou é bem mais interessante do que acontece e até do que virá. Mas eles não deixam de viver o presente. Só guardam uma pontinha de saudade do passado.

Caso do produtor Paulinho Madrugada, 36 anos. Longe de falar 24 horas por dia sobre a década de 1980, quando viveu a infância e o começo da adolescência, para recordar os ;bons tempos;, ele resolveu fazer duas vezes por ano uma festa na qual celebrar a década em que o rock brasileiro estourava nas paradas de sucesso. Para o antropólogo Roberto DaMatta, autor do texto Antropologia da saudade, incluída no livro Conta de Mentiroso (Ed. Rocco), a saudade é uma categoria do espírito humano e tem dentro dela certos valores e ideologias. Segundo o estudioso, a saudade abraça um conceito duplo. Tanto pode ser uma experiência universal, pois trata da passagem de tempo e da consciência reflexiva dessa passagem, como uma experiência singular.

Ferramenta de grande relevância para a preservação da memória individual e coletiva, recorrer à saudade de décadas passadas perpetua ensinamentos e valoriza movimentos culturais que, à sua forma, revolucionaram e contribuíram para futuras gerações. Seja você um nostálgico rockabillie ou um saudosista dos anos 1980, a retrofilia veio para ficar. Como um elemento que agrega passado e presente, uma espécie de ode à naftalina.

Para entender
Nostalgia: saudade da terra natal; desejo de se voltar ao passado; tristeza sem causa definida, segundo o Dicionário Houaiss.
Saudosismo: apego ao passado, segundo o Dicionário Houaiss.
Retrofilia: neologismo para designar um comportamento relacionado ao consumo carregado de significação, descontextualizado e sem recriação cultural. Ainda não há referências da palavra em dicionários.

Saudade não faz mal a ninguém
Apaixonado pelos anos 1980, Paulinho Madrugada promove uma festa, duas vezes ao ano, para celebrar a décadaDuas vezes por ano, Paulinho Madrugada celebra o passado. Na festa A volta aos anos 80, o produtor de 36 anos aumenta o som para canções do Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Ultraje a Rigor e de outras bandas que arrebataram uma geração hoje balzaquiana. ;Não que eu tenha me perdido no tempo, ou que goste de ficar sozinho com minhas lembranças. Eu curto o presente, mas acho que os anos 1980 foram marcantes para a música brasileira. Por isso, a festa continua chamando tanto público e fazendo sucesso;, acredita.
Durante a década em que o Brasil viu ruir a ditadura e a democracia dar os primeiros passos com as Diretas Já, Paulinho era um menino. Assistia ao Sítio do Pica-pau amarelo, brincava com bonecos Lego, lia os quadrinhos da Turma da Mônica e acreditava que os super-heróis brasileiros eram Didi, Dedé, Zacarias e Mussum.

As letras de Renato Russo, então, logo o cativaram. Legião Urbana, Plebe Rude e Capital Inicial entraram para a lista de favoritas do garoto, que vibrava quando escutava os acordes das bandas no rádio. No entanto, quando o menino estreava a adolescência, o sonho acabou. ;Acho que, por isso, sou saudosista. Não acho que era mais feliz naquela época, mas foi nesse período que vivi minha infância e começo de adolescência. Só queria ser um pouco mais velho na década de 1980 para estar dentro do olho do furacão, para ter acompanhado mais todas aquelas bandas;, ressente-se.

A década seguinte negou tudo o que Paulinho tanto valorizava. O corte abrupto foi o que impulsionou o jovem produtor a criar, em 1995, um evento que recordasse o melhor dos anos 1980. No começo, a festa reunia uma geração contemporânea a dele e que também sentia falta de dançar sucessos oitentistas e relembrar coreografias sem embaraços. Isso explica ao bem-estar de ouvir aquela canção que embalou um capítulo da adolescência.

Nas rodinhas, o papo eram as vilãs das novelas das oito, seriados, filmes e a moda colorida da época. Porém, dos últimos anos, Paulinho observa a chegada de jovens que sequer jogou Atari, mas que sabem cantar Menina veneno, sucesso do cantor Ritchie, com a mesma desenvoltura dos mais velhos. ;Parece até que na festa os adultos viram adolescentes e os adolescentes, adultos. Essa troca é muito bacana.;

Sem qualquer pingo de melancolia ; e com muito bom humor ;, a nostalgia que move Paulinho Madrugada é a mesma que cativa o público saudosista quer gosta de relembrar o que viveu ou deixou de viver. Sem falsa modéstia, o produtor brasiliense pretende tirar da naftalina toda os hits da geração coca-cola no próximo 16 de abril, primeira edição da festa deste ano. Próxima da maioridade, A volta dos anos 80 pretende dançar ao som de Michael Jackson a Silvinho Blau Blau. E por que não?

Vida longa aos topetes
Os amigos Lucas Billy (de preto) e Olavo Perigoso cultivam os topetes e as costeletas, mas não queriam ter vivido nos anos 1950 e 1960Em 1954, quando Bill Haley gravou a música Rock around the clock, o músico lançou não apenas um sucesso, mas um gênero musical: o rockabilly. No mesmo ano, surgiu outro artista que popularizou o gênero. Esse era Elvis Presley. Os adeptos do estilo musical e estético valem-se de produtos dos anos 1950, como topetes e costeletas, além da calça justa, sapato bicolor ou mesmo o tênis allstar. No bolso, sempre carregam um pente para não deixar o penteado bagunçar ao som do rock nos bailes organizados por outros fãs do ritmo.

Olavo Henrique de Andrade, também conhecido como Olavo Perigoso, é rockabilly desde 1998, quando tinha apenas 18 anos. Hoje, aos 30, o bancário, que já participou de uma banda do gênero, explica que rockabilly não é só uma maneira de se vestir, mas de viver também. Ele conta que nunca foi criticado pelo estilo. ;O máximo que a gente ouve é um ;Elvis não morreu; quando vamos aos bares. Mas não levo isso para o lado pessoal.; Lucas Malta participou da banda de Olavo. O publicitário de 23 anos, que também atende pelo nome de Lucas Billy, conheceu o gênero por meio de filmes da Sessão da Tarde quando tinha 16 anos e nunca mais deixou a brilhantina de lado.

O estilo rockabilly também conquistou a designer Liliá Liliequist, 34. Há 10 anos, ela assumiu o estilo dos pés à cabeça. Sem internet na época, Liliá conheceu o rockabillie quando ainda morava em Campinas (SP). ;Me identifique com a rebeldia da época. Comecei a ouvir muitas músicas do gênero, como as do Elvis, Johnny Cash e Wanda Jackson.; Fishnet Stocking, seu nome rockabilly, é apoiada pela família, principalmente pelo marido, que não faz parte do grupo.

Apesar da veneração ao passado, nenhum desses adeptos do rockabilly gostaria de ter vivido nas décadas de 1950 e 1960. ;Não dá nem para pensar em viver naquela época. O machismo era muito forte e hoje estamos muito longe deles nessas questões sociais;, opina Liliá. Já Olavo prefere se destacar por estar com os dois pés no presente. ;Se vivesse naquela época, seria apenas mais um topete no meio de tantos outros.;

Guia rockabilly
A designer Liliá Liliequist tem o apoio da família para incorporar o estilo rockabilly: a caráter da cabeça aos pésA designer Liliá Liliequist dá dicas para quem quer se tornar um rockabilly
- Primeiro passo: ouça músicas da época. Comece com Elvis, Johnny Cash e Stray Cats. No Brasil, também temos João Penca e seus Miquinhos Amestrados, Coqueluche e Crazy legs. Um disco recomendado é o Million Dollar Quartet, gravado do encontro musical entre Elvis, Johnny Cash, Jerry Lee Lewis e Carl Perkins.
- Segundo passo: invista no visual. As meninas podem aderir ao estilo pin-up. Abuse das estampas xadrez, listrada e de bolinha.
- Terceiro passo: qualquer que seja seu estilo, o penteado deve ser muito bem trabalhado. Liliá gasta mais de uma hora para se transformar visualmente numa rockabilly. O que dá mais trabalho é o cabelo. Para ajudar nessa tarefa, o livro Style me vintage, traz penteados passo a passo, encontrado no site www.anovabooks.com. Para os homens, basta se inspirar em James Dean no filme Juventude transviada. Blusa branca, jaqueta de couro, calça com a barra dobrada e sapatos crapers.
- Quarto passo: tatuagens também são importantes. Elas têm que ser grandes e no estilo old school. Os temas são geralmente amor, corações partidos, mulheres, viagens e bebidas.
- Quinto passo: busque referências no cinema. Liliá indica: Juventude transviada (1995), Grease nos tempos da brilhantina (1978), Quem não chora não; ama (1990), Johnny e June (2010) e La bamba (1987).

O retrô na moda
Quem nunca ouviu a mãe ou a avó dizer, ao ver uma tendência lançada numa revista: ;Isso já é velho; É de quando eu era mocinha;? Às vezes nos perguntamos porque a moda sempre vai e volta. O coordenador do curso de design de moda do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb), Marco Antônio Vieira, explica que isso se deve à contextualização de elementos e referências de outras épocas a inovações do presente. ;Ocorre uma recombinação e um redesign de elementos do passado, criando uma nova vida. É um deslocamento em relação ao sentido original da roupa. Um resgate da aura que teve em outra época;, explica.
Este ano, no cenário da moda, não há uma década predominante, segundo observação do professor. Várias épocas estão diluídas. A Louis Vuitton, por exemplo, usou a década de 1940 numa coleção inspirada no militarismo. Outro exemplo foi a coleção da Gucci, que apostou nos anos1970, em roupas com silhueta skinny, calça em veludo cotelê e muito marrom. Enquanto as coleções do verão europeu colocaram em voga cores vibrantes, que remetem aos anos 1980. Já no inverno europeu, a moda masculina trouxe a estética militarista das décadas de 1930 e 1940 nos casacos. ;O contexto se modifica. Ou seja, vemos peças novas com base em conceitos antigos;, analisa Marco Antônio.

De lá para cá
Elas têm a força Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia ; Programa de TV norte-americano de sucesso nos anos 1970 com Kate Jackson, Farrah Fawcett e Jaclyn Smith, As Panteras continua com grande apelo entre as garotas. Este ano, o remake da série volta à televisão com Rachael Taylor (a Lucy Fields de Grey;s anatomy), Minka Kelly (a Lyla Garrity de Friday night lights) e Annie Ilonzeh (a Maya Ward de General hospital).

Troca-troca Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia ; O relógio troca-pulseiras da Champion, sucesso na década de 1980, virou mania também no século 21. Relançado em 2009 com 72 opções de cores, o modelo já vendeu mais de 2 milhões de peças em todo o Brasil e é o campeão de vendas do setor no Brasil.

Trocando os erres pelos eles Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia ; Nos anos 1980, os personagens de Maurício de Souza tomaram conta do pedaço e começaram a vender bem mais que Luluzinha e Bolinha e as revistas da Disney. Hoje, o gibi, que comemora mais 40 anos, já foi publicado em 126 países e, na versão mangá do século 21, bateu recorde de 400 mil exemplares mensais entre o público adolescente.

Vale a pena ver de novo Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia ; Vale tudo, sucesso em 1988, contou a história da vilã Maria de Fátima, que nega o passado pobre para subir na vida a todo e qualquer custo. A novela conquistou e ainda conquista fãs com a reprise no canal Viva (Globosat). A novela segue como campeã de audiência na madrugada. Nas duas primeiras semanas de exibição, a novela atingiu várias vezes a lista de Topic Trend do Twitter.

A força dos produtos vintage Será possível sentir saudade de um tempo que nem se viveu? Para um grupo de jovens, sim. Eles se unem a outros tantos nostálgicos que fazem questão de valorizar as décadas em que eram crianças/adolescentes. O comportamento até já ganhou uma denominação: retrofilia ; Produzido entre as décadas de 1920 e de 1980, o vintage é tendência entre o público do século 21 e aposta de grandes empresas, que já se atentaram para esse desejo do consumidor. São refrigerantes relançados em garrafinhas retrôs, sabonete com embalagem idêntica a de 1950, revestimento de madeira em linhas vintage, tocadores de MP3 em formato de rádio de madeira, frigobar com cara de geladeira dos anos 1960. ;São peças preciosas que transmitem a ideia de atemporalidade, feitas para nunca sair de moda;, acredita a arquiteta Ana Barata.

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