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Ainda uma sociedade desigual

O especialista em políticas públicas conversou com a Revista sobre uma série de temas, com ênfase na desigualdade como uma característica persistente da realidade brasileira

postado em 06/04/2011 13:19

O especialista em políticas públicas conversou com a Revista sobre uma série de temas, com ênfase na desigualdade como uma característica persistente da realidade brasileira

Às margens do desenvolvimento
"Se a gente está pensando em temas estratégicos, mais candentes para um horizonte de médio e de longo prazos, sem dúvida a questão da desigualdade social é central. Eu colocaria a desigualdade também com o ;hífen; do social e do econômico. Veja o Brasil: nas últimas décadas, apresentou taxas de crescimento e conseguiu sair do que era considerada, até a década de 1950, uma sociedade agrária. Então é uma sociedade que se urbanizou, que se industrializou, que consegui incorporar setores importantes ; em alguns foi à ponta do desenvolvimento industrial. Enfim, o Brasil se modernizou. Mas é aquela velha tese da modernização conservadora: você fez isso para poucos. Mas para ;fora; do que para ;dentro;. Então você tem, ainda hoje, a grande maioria da população ainda marginalizada com relação a esse desenvolvimento. Daí a desigualdade. A população foi à cidade, mas mora na periferia em condições praticamente sub-humanas: nas favelas, onde falta infraestrutura, educação, serviços de saúde, transporte público. Muito pouco se avançou nesse ponto de vista."

Avanços reais e aparentes
"A contrapartida disso é a questão da renda. A maioria da população brasileira vive com um nível de renda extremamente reduzido, apesar de ter havido um avanço nos últimos anos. Mas ainda é uma das sociedades mais desiguais do mundo. Essa então é uma característica a ser enfrentada com coragem e ousadia, que não houve nem nos últimos dois mandatos, em um governo do Partido dos Trabalhadores. O que aconteceu? Você teve uma melhoria na aparência porque, efetivamente, houve uma política de valorização do salário mínimo, de ampliação de benefícios e de programas de inclusão, como o Bolsa Família. Isso melhora efetivamente. Mas tem um problema metodológico que a maioria da população desconhece."

Uma distorção importante
"Melhorou a distribuição de renda do ponto de vista da fração da população recebendo determinado valor. É o que os especialistas chamam de decis, cada fatia de 10%. O último decil ; quer dizer, os 10% com melhores rendimentos mensais ; são aqueles que ganham a partir de R$ 3 mil e pouco. Mas você não pode considerar rica, no Brasil, uma pessoa que ganha R$ 4 mil por mês. Isso mostra o quê? Mostra nem tanto o perfil da distribuição de renda, mas o da riqueza, como defende o professor Márcio pochmann, presidente do Ipea. Então, para fazer uma aferição efetiva, você pega o 1%. Isso sim permite pegar a fatia da população que se pode chamar de rica ; não só pelo rendimento mensal, que é alto, mas por outro dado importante, que é a questão patrimonial."

A distância do topo à base
"Você tem dois elementos: as variáveis de fluxo e as de estoque. As de fluxo é o que a família recebe por mês. Mas isso, muitas vezes, pode ser fruto de uma conjuntura específica: quando se tem um novo emprego ou aquele mercado em que a pessoa trabalha está aquecido no momento. Ela tem uma renda mensal, mas não significa que a família acumulou um determinado estoque de patrimônio. E é isso que permite até não trabalhar ; quando o sujeito tem renda derivada de aplicações financeiras ou associada a patrimônio que vem de 200 anos. Apesar da melhoria do perfil de distribuição de renda, muito pouco foi mexido nessa relação. Se você pegasse o 0,5% mais rico, perceberia que a desigualdade do topo com relação à base aumentou ainda. Os ricos ficaram mais ricos, mais do que os pobres obtiveram de melhoria na renda real."

O cerne da questão agrária

"No orçamento, por exemplo, você compara quanto o governo gasta com juros e quanto gasta com benefícios previdênciários ou com o Bolsa Família. Ele gasta mais com o que vai acabar nas contas da população que já tem mais renda do que com aquela locação orçamentária voltada para a população mais carente. Esse é o primeiro dado. O segundo é a distribuição patrimonial da terra. A concentração é uma das mais altas do mundo. Grupos econômicos detêm porções de terra extremamente maiores do que as de agricultura familiar. Isso significa não só uma concentração latifundiária, mas, no final de cada safra, uma elevadíssima concentração de renda derivada daquela atividade agrícola."

A fome disfarçada
"Associado a isso, há a questão da fome. Lembro que, no primeiro mandato do presidente Lula, saiu uma pesquisa do IBGE que deixou o pessoal na Esplanada muito bravo. Eram esperados os primeiros resultados do Bolsa Família e o IBGE veio com um estudo mostrando que o brasileiro estava se alimentando mal e estava cada vez mais obeso. O país conseguiu superar aquela realidade descrita por Josué de Castro, de um povo à míngua, com índices de subnutrição muito elevados e associados à mortalidade infantil. Mas o que acontece? Apesar da melhoria em alguns desses indicadores, a população come mal, é subnutritada. E come o quê? Carboidrato, refrigerante, tudo aquilo que a sociedade mercantilizada oferece. Ou seja, os dados da fome se transformaram, mas em algumas regiões ; o semiárido nordestino, as franjas das grandes metrópoles, o Entorno do DF ; existe ainda uma população com carência alimentar."

Uma iniciativa promissora
"Há um contraste com o potencial alimentar do país. Você tem áreas enormes que poderiam eventualmente ser direcionadas para uso agrícola e para a alimentação da população. Mas você planta combustível, alimento para gado e outros tipos de animais; você exporta soja, álcool, mamona ; ou seja, produtos que não são a base do que deveria ser a produção agrícola. Mas algumas coisas melhoraram. Houve alguns compromissos estabelecidos pelo governo nesses últimos anos. Por exemplo, houve estímulos para que a merenda das escolas tivesse origem em produção local associada a agricultura familiar. Isso poderia ser desenvolvido muito mais. Grandes capitais, como São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Brasília, têm um potencial de demanda enorme. Então você teria dois ganhos. Um ganho na qualidade da nutrição ; porque não tem agrotóxico. E você tem um perfil de melhora na distribuição de renda, justamente porque não são grandes produtores."

A muleta da indexação
"O fenômeno da financeirização ganhou no Brasil uma dimensão multiplicada. Houve um reforço extraordinário das atividades de natureza financeira em relação ao conjunto das atividades do setor real da economia ; a produção de mercadorias, a geração de serviços, de bens tangíveis. O fato é que, aqui, a questão financeira ganhou uma dinâmica muito autônoma, muito forte. Isso tem a ver com um período histórico, nos anos 1980, de inflação muito elevada e a forma meio tupiniquim de dourar a pílula, que era a questão da indexação. Com esse fenômeno ; todos os preços, em princípio, eram reajustados ;, você convive com a inflação, mas antecipa também, de forma galopante, a elevação dos preços. Essa coisa financeira acabou entrando tecido social e na mentalidade das pessoas de uma maneira muito ampla."

Campeões mundiais de juros
"Passada a coisa da inflanção, a partir de 1994, com o Plano Real, você consegue romper com memória inflacionária, com o risco da inflação inercial. Mas você tem a contrapartida disso, que é um custo social, econômico e financeiro causado pela opção do modelo da taxa de juros muito alta. A política monetária foi o elemento central que se encontrou para combater o risco da volta da inflação. Daí o Brasil passou a viver cronicamente ;doente; e dependente da taxa de juros elevada. Então a gente está há 15 anos como campeões mundiais da taxa de juros. Em alguns meses fomos superados pela Turquia, pela Rússia, mas é a mais alta do mundo. Infelizmente, parece que a sociedade brasileira se acomoda, como se fosse um dado da realidade."


Agradecimento: Agência Carta Maior


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