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Meio século de namoro com o Brasil

Aos 64 anos, atriz relembra os papéis marcantes, que ajudaram a transformar a história cultural e comportamental do país, e fala dos projetos futuros

postado em 21/04/2011 18:29

Aos 64 anos, atriz relembra os papéis marcantes, que ajudaram a transformar a história cultural e comportamental do país, e fala dos projetos futurosO Brasil parava às oito horas da noite. Na cozinha, a panela de pressão podia apitar agudo que nem mesmo o preparo do feijão, antecipado para a marmita do dia seguinte, tirava-lhes a atenção. Todos grudavam na TV para assistir a Malu brigar pela emancipação da mulher ou à viúva Porcina derreter-se em chamegos por sinhozinho Malta. E nem pensar em piscar os olhos durante o bate-boca de Raquel e Maria de Fátima (mãe e filha) ou quando a vendedora de sucatas Maria do Carmo lavava roupa suja com Laurinha Figueiroa. Protagonista desses e de outras dezenas de papéis que renderam ibope e muito bafafá nas ruas, Regina Duarte tornou-se a melhor amiga dos telespectadores ao longo de meio século de carreira. Amparadas pela ética e pela perseverança ; por vezes irritante ;, as heroínas que a atriz interpretou permanecem no imaginário de fãs e conquistou jovens curiosos que, este ano, com o sucesso da reprise de Vale tudo no canal Viva (Globosat), se apegaram à atriz.

Fora da ficção, Regina Duarte deixa transparecer certa fragilidade aos 64 anos. Mas a atriz paulista, magra e discreta, confirma força e segurança com gestos redondos, voz grave e, levemente, rouca. Como uma leoa que teve de se defender de preconceitos desde que encenou o primeiro orgasmo da televisão brasileira em Malu Mulher ou da vez em que deu o primogênito à filha que acabara de dar à luz um bebê natimorto em Por amor. De passagem por Brasília para o projeto Escritores brasileiros, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a atriz compartilhou passado, presente e futuro num bate-papo com a Revista. Na entrevista, Regina Duarte mostra a mesma simpatia que admiramos na televisão e sorri como as românticas Helenas de Manoel Carlos. Realizada, ela não pretende parar de trabalhar e deve voltar à TV em julho como Clô Ayalla, num remake da novela O Astro, de Janete Clair. Quando o assunto é família, então, empolga-se ao falar sobre a delícia de ser avó. ;Mas eu não mimo nem tenho coragem de dar um chocolate para eles antes da refeição. Acho que sou uma avó muito cri-cri;, confessa. Autocríticas à parte, Regina não se cansa de lapidar o comportamento de exemplar namoradinha ; e heroína ; do Brasil.

A partir do sucesso de audiência da reprise de Vale tudo, tem escutado muitos comentários e perguntas sobre a personagem Raquel?
Muito! Parece até que estou com uma novela no ar às oito da noite. Pessoas de todas as partes vêm conversar comigo sobre a novela. Agora mesmo, estou indo fazer uma entrevista sobre ela na comemoração de um ano do canal Viva (Globosat), mas é impressionante a força dessa reprise. Quando fiz a Raquel;Entenda;Ela tem valores que são meus. Fui criada por um militar e uma mãe muito religiosa para ser uma moça honesta. Cresci numa família de padrões éticos muito rigorosos. Então, a Raquel que eu fiz tinha uma convicção, uma fé naquilo que ela defendia e que chegava a ser irritante (risos). Muita gente fala: ;Nossa; A Raquel é demais;. Mas é que existem pessoas assim. Eu era assim, fui assim; Quer dizer, sou assim. Acho que sem aquela rigidez absoluta, mas com a mesma disposição de ser ética na vida. Naquele momento e hoje, o Brasil precisa de gente ética. Por mais que as pessoas saibam que vivemos no ;país do jeitinho;, da roubalheira, da mentira, da fraude, da corrupção, eu sinto que existe uma enorme carência de honestidade e de bons exemplos. De gente que cometa o ato heroico de ser honesto. A Raquel é isso. Fico querendo muito acreditar que o sucesso do personagem hoje, em 2011, depois de tantos anos que a novela foi ao ar, é porque o ser humano quer o bem e a ética. Precisa da ética para deitar a cabeça no travesseiro e dormir feliz.

Alguns críticos acreditam que a telenovela de hoje está mais para a ficção que para uma crônica do nosso cotidiano. O que você pensa disso?
É verdade que, se tem uma coisa que mudou bastante, é o interesse do público, deslocado da mocinha para a vilã. No meu tempo não era assim (risos). Sinto que hoje as vilãs interessam mais, talvez porque as mocinhas não tenham os atrativos suficientes para satisfazer o espectador. As vilãs estão mais comprometidas com a ação e as mocinhas mais passivas. Posso entender por aí. Nas novelas que fiz, as minhas heroínas eram mocinhas, pessoas do bem, mas que carregavam a ação. Isso era um diferencial.

A história da telenovela caminha lado a lado com a sua carreira. Que reflexão você faz sobre os trabalhos que encenou na TV?
Sou uma pessoa romântica. Acho que a telenovela é um produto incorporado ao cotidiano do brasileiro e me dá muito prazer poder levar, todas as noites, emoção e entretenimento para tanta gente. Poder passar mensagens construtivas sobre tantos assuntos é uma bela missão da qual gosto de fazer parte. Sempre com muita alegria e convicção de que estava fazendo algo que pudesse contribuir, em algum nível, com o ser humano do meu país. Sabia que a novela vinha preencher uma carência. Distrair as pessoas da dor, do sofrimento. Nos intervalos, sempre que estava gravando, me lembrava de pessoas absolutamente solitárias, isoladas, sofrendo, que iriam receber a novela como um presente. Eu pensava mesmo em fazer meu trabalho como se estivesse dando um presente.

O programa Malu Mulher foi um divisor de águas na sua carreira que ajudou a quebrar o estigma de ;namoradinha do Brasil;?
O programa deu visibilidade para uma nova mulher que estava nascendo no mundo inteiro. Uma mulher que saia da tutela do pai, da mãe, do marido. Que não precisava de um macho para ser alguém na vida e que podia contar com ela, com a força dela, com o valor do trabalho e da sua capacidade de discernimento e aprendizado. A mulher sempre foi grandiosa na sua sapiência. Ela conhece a vida intuitivamente só partindo do princípio de que gera vida. Isso dá a ela uma sabedoria inigualável, sem querer disputar. E Malu Mulher veio para refletir um movimento de libertação e independência dessa mulher que ousou queimar o sutiã, começou a usar a pílula, podia escolher o momento de ser mãe, porque, querendo ou não, o filho poderia prendê-la em casa e fazer com que ela ficasse dependente do homem para sobreviver na medida em que teria que cuidar da prole. Foi maravilhoso, uma terapia para mim. Vivi em dois anos o que levaria 10 para viver. Pude discutir, investigar, questionar assuntos e temas que levaria tempo para entender. O programa me proporcionou um aprendizado condensado e acelerado. Enfim, tenho muito orgulho de ter participado desse programa que não foi sucesso só no Brasil, mas no mundo. Exibido três vezes na Holanda, quatro vezes na Suécia, três vezes pela BBC de Londres; Um programa que colocou o Brasil numa posição de grande respeito pelo nosso trabalho de dramaturgia.

Você sofreu algum preconceito quando interpretou Malu?
Não tanto; Mas na ponte aérea, quando aqueles executivos que faziam o eixo Rio-São Paulo passavam por mim ;brincavam; e falavam: ;Seu programa é muito subversivo. Não deixo minha mulher assistir;. Sabe? Brincandeirinhas, né? Brincadeiras de homens inseguros.

Da personagem Malu e outras mulheres batalhadoras que você interpretou de 1970 a 1980 às românticas Helenas, heroínas do autor Manoel Carlos. Você acredita que ainda existem Helenas por aí?
O que acho importante destacar das Helenas é que elas têm um ato falho, trágico: elas mentem. E eu adoro isso (risos). Porque elas deixam de ser a heroína incólume, absolutamente helênica. Ela passa a ser dionisíaca à medida que mente. Ela se compromete com uma situação que a deixa dividida e sempre é por conta do amor por uma ou mais pessoas. Existe uma carência latente na mulher moderna que vai fazer com que ela busque um companheiro, um amor. Essa é uma necessidade humana que precisa ser satisfeita.

Como é seu dia a dia?
De manhã à noite é batalha, uma loucura (risos). Tenho uma vida múltipla. Faço compras, resolvo as coisas de casa. Agora, estou com uma assessora maravilhosa, que é um anjo. Perdi um agora, o Eriberto (Eriberto Monteiro foi empresário de Regina Duarte por 34 anos. Grande amigo da atriz e pai do ator Eriberto Leão, morreu aos 66 anos, em 12 de abril, de insuficiência coronariana). A vida pode ser muito cruel. Sem essas pessoas, sem a Zezé, que também já foi embora, mas que foi babá do meu filho, eu não conseguiria fazer meu trabalho de atriz. Às vezes, acho que não vou aguentar tudo o que tenho para fazer. Outras vezes, acho que é bom ter muita coisa para fazer, que viver é isso e que vamos ter tempo para descansar na eternidade (risos). Mas cuido do corpo, da saúde, da relação com filhos, marido, amigos, trabalho. Tenho que estar atenta ao que está acontecendo no mundo, estar participante, envolvida. Me envolvo com muitas causas nas quais eu acredito e acho que isso é que é vida. De vez em quando é bom ter 10, 15 dias ou um mês de férias. Delícia não pensar em nada, não ter compromisso com nada. Mas compromisso com ação e reflexão é saudável, e o ser humano precisa, senão se deprime e morre. Agora, parar de trabalhar jamais.

E como é a Regina avó?
Para mim é uma delícia não ter responsabilidade de criar, educar, poder participar da formação de um ser humano e, ao mesmo tempo, curtir toda a delícia que é acompanhar o crescimento da criança. Eu não mimo não. Brinco muito e me divirto muito, estou aberta para brincadeira, fantasia; Curto essa fase com eles, mas não me permito estragar um neto. Até ouço avós falarem: ;Eu estrago mesmo;. Eu não. Não tenho coragem de dar um chocolate para eles antes da hora da refeição principal. Não tenho coragem de deixá-los fazer algo que não é conveniente. Acho que sou uma avó muito cri-cri (risos).

Como analisa esse momento em que mulheres estão representadas no poder pela primeira presidente da história?
Acho maravilhoso ter uma mulher no poder. O país é abençoado por ter uma mulher como presidente. Temos outra sensibilidade para olhar nossos problemas e estou torcendo, feliz, encantada com a presidente Dilma porque, agora, o país vai ter oportunidade de continuar a crescer e prosseguir com as conquistas dos últimos 20 anos.

Quais os próximos projetos? Dá tempo para ter algum hobby em meio a tantas atividades?
Vou fazer a série O Astro e estou com uma peça de teatro que vou começar a produzir. Mas, depois do convite para fazer a novela, adiei a peça por quatro ou cinco meses. No início de 2012, devo estar de volta ao teatro. Passatempo? Bem; Meu trabalho é meu hobby. Tenho tanto prazer em fazer o que faço que ler um livro, que sirva de referência para meu trabalho, ler uma crônica, como fiz nesse projeto no CCBB, me enriquecem. Tudo isso é lazer e prazer. Minha profissão é apaixonante. Sou tão encantada com ela que, quando estou em cena, é como se estivesse num parque de diversões; Na Disney (risos).

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