Revista

Livre arbítrio: uma ficção?

Para os adeptos da corrente filosófica fisicalista, não decidimos nada %u2014 ou muito pouco. O que somos, o que pensamos e a forma como agimos são respostas puramente fisiológicas

postado em 22/07/2011 19:15

Para os adeptos da corrente filosófica fisicalista, não decidimos nada %u2014 ou muito pouco. O que somos, o que pensamos e a forma como agimos são respostas puramente fisiológicas

Quando o geneticista Renato Zamora Flores, doutor em genética e biologia molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez uma palestra para estudantes de filosofia sobre a questão do livre arbítrio e da corrente filosófica fisicalista foi praticamente expulso da sala de discussão pelo conteúdo exposto. O mesmo assunto, debatido no último Congresso Internacional sobre Cérebro, Comportamento e Emoções, ocorrido em junho, numa sala repleta de médicos dos mais diferentes escalões, era trivial. No palco, especialistas com pós-doutorado e currículos extensos, simplesmente derrubavam a subjetividade da mente. Ali, tudo o que somos e pensamos, a forma como agimos e nossa própria personalidade é uma resposta à fisiologia do nosso cérebro, glândulas, conexões neurais e afins.
Na plateia, pipocavam perguntas e dúvidas, mas nenhum questionamento sobre a natureza da hipótese. Era fato consumado. Seríamos fruto do funcionamento do nosso cérebro e, para cada padrão de comportamento, existiria uma explicação científica. Exemplo: fulano é tímido porque seu cérebro funciona de determinada maneira; cicrano é violento por um problema determinado em seu lóbulo frontal. ;Não existe isso de livre arbítrio;, cravou Zamora.
O assunto é dos mais espinhosos, uma vez que traz à tona uma suposta isenção de nossas ações. Por exemplo: um assassino não agiu apenas num ímpeto de maldade. Ele já tem a predisposição ao ato por motivos fisiológicos. ;Não temos mérito por ser quem somos. A ciência vai acabar derrubando o julgamento moral;, acredita o geneticista. O próprio crime do colarinho branco teria justificativas físicas. ;A experiência mental que nos absorve e embala desde que nos tomamos por gente não passa de um subproduto caprichoso e intrigante de processos físicos (daí o termo fisicalismo), que ocorre de forma autônoma e autossuficiente no organismo;, aponta o escritor ; dono de dois prêmios Jabuti ;, economista e professor das Faculdades Ibmec de São Paulo e PhD pela Universidade de Cambridge, Eduardo Gianneti, um dos porta-vozes do fisicalismo no Brasil.

Segundo Giannetti, o cérebro humano responde sozinho por todas as nossas ações, crenças, sentimentos íntimos e tudo o que acreditamos. ;Embora tenhamos uma sensação de controle sobre o nosso pensamento e nossas ações, essa sensação não passa de um subproduto do nosso cérebro. Uma ilusão remanescente do ambiente arcaico, no qual prevalecia a crença de que tudo o que se mexe na natureza tem alma;, aponta. ;O fisicalismo subverte a nossa psicologia intuitiva e lança uma luz perturbadora sobre tudo o que nela repousa.;

O que nos comanda


Para absorver os argumentos fisicalistas é preciso entender que, mais do que pautados em ideias, eles são pautados na ciência. Tal qual o mundo pode ser explicado e desvelado por processos físicos, o ser humano e o total funcionamento do seu corpo ; e aí se incluem as emoções, as ações e a mente ; não fugiria à regra. A mente e o corpo não são dissociados: eles são um, reduzidos a uma série de processos físicos que, mesmo que ainda não totalmente compreendidos, serão perfeitamente explicados pela ciência, conforme avançam as pesquisas na área. Da escolha do prato que você faz no restaurante ao palavrão proferido no trânsito. ;Cada vez que um cientista explica um comportamento humano por meio da ciência, você tira uma fatia do bolo do livre arbítrio. A tendência é que ele um dia desapareça;, afirma o geneticista Renato Zamora.

Quase tudo o que acontece no nosso corpo se dá de forma automática, não regida por uma vontade consciente. Desde a produção de saliva ao batimento cardíaco. Da mesma forma, existe também o ato consciente, como discar um número no telefone ou tomar um banho. Enquanto a corrente mentalista (um pensamento filosófico oposto ao fisicalismo) vê essa distinção como vontade independente e prerrogativa humana, a visão fisicalista questiona essa separação. ;Se estados mentais afetam estados do corpo, então o único ponto em que o contato efetivo se torna uma realidade concreta é o elo causal entre o pensar e o agir;, resume Eduardo Giannetti.

Segundo Eduardo Giannetti, em sua palestra no 7; Congresso Brasileiro de Cérebro, Comportamento e Emoções, um ato voluntário envolve a intenção de agir e a ação muscular. No lapso de tempo entre a intenção, de um lado, e a realização do ato, de outro, ocorre uma escalada de atividade neural nas regiões cerebrais que controlam os músculos acionados. A explicação é mesmo complicada. O neurocientista americano Benjamin Libet resume: a escalada de atividade neural precede no tempo não apenas a ação muscular, mas a própria consciência da ação de agir. Durante pesquisas, o registro eletroencefalográfico do que ocorre quando se toma a decisão de erguer o dedo aponta que o processo neurológico começa três décimos de segundo antes que a pessoa se torne ciente da sua própria intenção. ;É como se o meu cérebro soubesse antes de mim o que estou prestes a fazer e farei em seguida, e ainda tivesse a gentileza não só de me avisar da decisão, mas de fazê-la acompanhar-se da gratificante sensação de que seria a minha vontade consciente que está no comando e decidindo realizar aquilo;, explica Giannetti.

Estudo de caso


Um caso emblemático no meio médico é o de Phineas Gage. Em 1848, o construtor de ferrovias sofreu um acidente de trabalho, quando uma barra de aço de 2,5cm de diâmetro e mais de um metro de comprimento atravessou seu crânio, perfurando sua bochecha esquerda, olho, cérebro e saiu pelo topo do crânio. Phinea perdeu a consciência, teve convulsões mas, antes mesmo de ser levado ao hospital, recuperou a consciência e podia até mesmo andar. Aparentemente, sua recuperação foi quase imediata. No entanto, algum tempo depois, familiares e amigos perceberam uma mudança drástica no comportamento de Phineas. Ele não levava o trabalho a sério, tornou-se extravagante, mentiroso e antissocial. A explicação para a mudança de comportamento do construtor, segundo o médico Antônio Damasio (que estudou o crânio de Phineas anos depois), foi o início histórico das bases biológicas do comportamento.
A reconstituição do acidente, feita pelo neurocientista e neurologista português Antônio Damasio, concluiu que a barra de ferro atingira a região ventromedial dos lobos frontais em ambos os lados. Mas a parte responsável pelas funções motoras permaneceu intacta. Aos poucos, os médicos observaram mudanças comportamentais parecidas em pacientes com lesões similares e consequentes deficits nos processos de decisão racional e de controle da emoção.
O geneticista Renato Zamora conta um caso parecido. ;Um garotinho de 3 anos que mora na minha rua foi atropelado, e teve essa lesão no lobo superior. Ele se recuperou bem, mas aos poucos a família foi notando algumas mudanças de hábitos. Ele começou com pequenas maldades até chegar ao ponto de matar cachorrinhos, gatinhos, e até tentar afogar a irmã na piscina.; Para o geneticista, a região afetada pelo acidente foi a que gerenciava questões morais e de contenção de impulsos violentos.

Desvendando o comportamento humano


Com base em comportamentos sociais, os pesquisadores estudam a fisiologia de pacientes e procuram pontos em comum que justifiquem um padrão anatômico funcional de doenças neuropsiquiátricas ou mesmo de transtornos de personalidade. O neurocientista Adrian Raine, professor da Universidade da Pensilvânia, analisou imagens cerebrais de detentos de prisões de segurança máxima. Entre eles, assassinos e serial killers. O que Adrian Raine concluiu foi um padrão fisiológico para tipos diferentes de criminosos. Por exemplo, as amigdalas cerebrais, responsáveis pela sensação de medo, entre outros sentimentos, eram reduzidas em serial killers.

Outras alterações estruturais no lobo frontal e no córtex pré-frontal também teriam ;parcelas de culpa; pelos comportamentos agressivos ; o lobo frontal, ligado ao controle das emoções e ao discernimento moral, é menos ativo em sociopatas. Junto com Adrian Raine, dezenas de estudos similares confirmam esse padrão. O neurocientista Jorge Moll Neto, em parceria com outros pesquisadores, avaliou a fisiologia cerebral de psicopatas, pessoas com transtornos bipolares, esquizofrênicos e antissociais, e também verificou padrões diferenciados com relação a indivíduos saudáveis. ;A influência biológica é muito grande no fator comportamento e discernimento moral. Mas o que é ainda mais interessante é que esses estudos podem ajudar essas pessoas. O fator físico não é necessariamente determinante, mas saber dessa predisposição pode evitar crimes e melhorar a qualidade de vida dessas pessoas;, disse Raine.

Segundo Renato Zamora, é possível reprogramar o cérebro e atenuar tais tendências negativas por meio da terapia cognitiva comportamental. ;É óbvio que fatores como o ambiente e a criação, a história de vida dessas pessoas, são fatores muito importantes para a definição de uma personalidade, de um comportamento. No caso do menino da minha rua, que sofreu o acidente, não acho que ele seja um caso perdido. Acredito em uma recuperação, com base na educação, no amor recebido;, explica.

Zamora pode estar certo. Pelo menos de acordo com uma das pesquisas de Adrian Raine, nas Ilhas Maurício, na África. Ele acompanhou por anos um grupo de quase 2 mil crianças, desde que tinham 3 anos. Separadas em dois grupos, metade gozava de uma rica alimentação, estímulos intelectuais, sociais e físicos. Comparadas as que não receberam tais estímulos, o primeiro grupo apresentou um índice inferior de agressividade. Vinte anos depois, as diferenças se mantinham as mesmas, e a redução de episódios violentos foi de 34%. Medidas simples que, segundo Raine, ainda não são usadas no combate à criminalidade. ;A neurociência não foge à regra. Como relata o neurocientista americano Roger Sperry, a convicção da maioria dos estudiosos do cérebro é que forças mentais conscientes podem seguramente ser desconsideradas no que respeito ao estudo científico objetivo do cérebro;, lembra Giannetti.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação