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O corpo masculino sobre pontas

Histórias de jovens que fogem do estereótipo do bailarino: nem todos são gays, nem todos brigaram com a família para calçar a sapatilha. Alguns foram forçados a dançar e outros até interpretam a rainha do lago dos cisnes

postado em 16/09/2011 11:38

Histórias de jovens que fogem do estereótipo do bailarino: nem todos são gays, nem todos brigaram com a família para calçar a sapatilha. Alguns foram forçados a dançar e outros até interpretam a rainha do lago dos cisnes

Para a sua família da Letônia, que passou a morar em São Paulo, dominar uma forma de arte era uma garantia de sobrevivência, um ganha-pão certo. Yuri amava dançar, mas não se sentiu à vontade com a ideia do balé e se recusou a participar das aulas. A timidez era tanta que um tio o obrigava a dançar no meio de praças públicas para que se soltasse. A tática deu certo. No ano seguinte, Yuri finalmente cedeu aos apelos e, por conta própria, se matriculou na dança. Aos 17 anos ganhou uma bolsa para estudar balé na Rússia, mas não foi. Para os pais, uma grande decepção. Os convites continuaram surgindo e, com a pressão física e psicológica, resolveu largar a dança e sair de casa.

Mas a falta dos treinos, em vez de trazer relaxamento, teve efeito contrário. Yuri sentia dores em todo corpo e só depois que se mudou para Brasília, com seu companheiro, percebeu que as dores físicas refletiam uma espécie de crise de abstinência da dança. Voltou aos palcos e começou a dar aulas de balé, em plena academia de ginástica, em uma sala pareada com a sala onde os fortões do jiu-jítsu rolam no tatame. Os cabelos loiros alinhados em gel, as malhas apertadas e a leveza no andar, naturalmente, causaram espanto em meio a um universo de homens supermalhados. Yuri conta que o porte do bailarino, a postura da dança, acabam lhe servindo como um mecanismo de defesa. Atravessa a academia com a cabeça erguida, como atravessaria o linóleo do palco, mesmo que, ocasionalmente, tenha ouvido piadas ou percebido olhares maldosos quando começou a trabalhar.

Hoje, Yuri faz parte da rotina do lugar. As crianças são apaixonadas pelo seu método de ensino e as aulas de balé adulto estão sempre lotadas de mulheres, senhoras e, vez ou outra, um suposto fortão da academia, que perde a vergonha e se arrisca na barra. No balé, os estereótipos são constantemente rompidos. Yuri dá o exemplo do pai que coloca a filha nas aulas na esperança de que ela seja uma menina correta, certinha, comportada. A ideia de etiqueta que transparece nas apresentações nem sempre é uma regra nos bastidores de muitas companhias de balé do mundo. De acordo com o bailarino, existe no meio muitas drogas e promiscuidade. Há os que usam entorpecentes até mesmo em busca do aperfeiçoamento das performances, para lidar com a dor física, aumentar a resistência e o pique nos treinos ou mesmo aguentar a pressão psicológica.

Quebrando estereótipos
Histórias de jovens que fogem do estereótipo do bailarino: nem todos são gays, nem todos brigaram com a família para calçar a sapatilha. Alguns foram forçados a dançar e outros até interpretam a rainha do lago dos cisnesA realidade dos bailarinos é muito diferente da das bailarinas. A maioria delas entra no meio por incentivo dos pais, ainda na infância. O que leva milhares e milhares de meninas à profissionalização, mesmo que não tenham o devido talento para tal. Já com os homens, o balé é uma opção pessoal, feita, em geral, na adolescência e quando o menino já tem um dom natural. Quase todos que se arriscam ali levam jeito para dança, o que eleva muito o nível técnico do balé masculino.

O bailarino Herlon Franklin, 33 anos, é um exemplo. Era um músico adolescente quando resolveu cursar aulas de teatro no Dulcina Moraes. Ele tinha 15 anos quando, durante uma aula de expressão corporal, a professora o chamou no canto da sala e lhe indagou se ele nunca havia se interessado pelo balé. Afirmou que ele tinha flexibilidade e facilidade de expressão, além de estrutura óssea e muscular perfeita para formar um bom bailarino. Ela lhe falou ainda que a bailarina Norma Lillia estava recrutando rapazes para uma trupe de dançarinos que estava formando.

Por coincidência, Franklin tinha se deparado, alguns dias antes, com uma fita VHS do lago dos cisnes, estrelado pelo bailarino Mikhail Baryshnikov, durante uma pesquisa sobre o músico Tchaikovsky para um trabalho da Escola de Música. Impressionado com a performance do dançarino no tradicional balé, não pensou duas vezes e aceitou o convite da professora. Os pais, nordestinos criados em famílias conservadoras, não tiveram nenhum preconceito com a nova empreitada do filho. Pelo contrário. Apoiaram no que foi preciso. Franklin passou imediatamente no teste e começou a treinar seis horas por dia, todos os dias, até alcançar a técnica necessária. No ano seguinte, já se apresentava pelo Brasil e pelo mundo como bailarino. Recebeu convites para integrar companhias internacionais, mas, mesmo amando a dança, o balé não era sua prioridade. Entrou no curso de administração e hoje é diretor de uma empresa.

Outro fato pode chamar atenção na história de Franklin. Em um universo no qual ele acredita que 80% do dançarinos são homossexuais, ele, heterossexual, acabava se tornando a sensação das aulas. As meninas, que passavam todo o tempo livre ensaiando, ficavam enlouquecidas quando algum bailarino heterossexual entrava na dança. O fato é confirmado pela bailarina e professora de balé Thais Barata. Basta um homem integrar o grupo que elas logo querem saber suas preferências. Franklin cedeu aos encantos delas, e chegou a ter uma filha com uma bailarina da escola. A menina, hoje, tem 9 anos e sonha em ser bailarina como os pais.

A opção sexual de um bailarino, na verdade, é um detalhe irrelevante, mas que chama a atenção do público e de curiosos que alimentam o estereótipo do bailarino afeminado. Um dos maiores dançarinos de todos os tempos, o letão Mikhail Baryshnikov, tinha seus casos amorosos ; heterossexuais ; acompanhados pela mídia com estranha insistência, depois de participar de programas televisivos e filmes promovendo a dança, quando se mudou para os Estados Unidos. Para o bailarino Yuri Brieds, a suposta desconexão entre o balé e a masculinidade não existe, até porque rapazes muito afeminados são muitas vezes negados nos exames das companhias de balé. No palco, o homem precisa passar virilidade para convencer como par romântico da bailarina.

Histórias de jovens que fogem do estereótipo do bailarino: nem todos são gays, nem todos brigaram com a família para calçar a sapatilha. Alguns foram forçados a dançar e outros até interpretam a rainha do lago dos cisnesJá em outros casos, a tal feminilidade pode ser, sim, muito bem-vinda. O grupo norte-americano Les Ballets Trockadero de Monte Carlo, por exemplo, exige que o bailarino seja desapegado quanto a questões de cunho feminilidade/masculinidade. Fundado em 1974, o grupo é formado apenas por rapazes que dançam os papéis masculinos e femininos das grandes peças de balé. Uma espécie de dança com drag queens altamente capacitadas sobre sapatilhas de pontas, fazendo os mesmos movimentos das bailarinas, porém com um toque de sátira e bom humor. Pura arte e entretenimento. O grupo é sucesso em todo mundo, acumulando revisões positivas dos mais competentes críticos de balé.

O jovem mexicano Roberto Lara é integrante do Trockadero e, em meio a uma turnê, conversou com a Revista pela internet. Roberto foi criado no México por uma família ultraconservadora. Descobriu-se bailarino aos 12 anos, quando começou a dançar folclore mexicano. Um par de meses depois, já estava na Escola Nacional de Dança Clássica do México. Os pais, que se sentiram desconfortáveis com a opção do filho, passaram a lhe apoiar após o assistirem pela primeira vez nos palcos. Anos depois, surgiu a chance de integrar o grupo Trockadero de Monte Carlo. Uma oportunidade única para um homem: poder dançar sobre a ponta e fazer papéis clássicos das primeiras bailarinas. O convite era irrecusável.

Para ele, a experiência com o grupo é libertadora, especialmente quando pode perceber, dentro de vestidos, tutus e paetês, que o público jamais se divertiu tanto com sua performance. Roberto encara o amor pela dança como um amor cego. No qual você doa todo o seu tempo, energia, atenção e disciplina para uma fase que vai durar poucos anos da vida, mas que a marcará profundamente. Uma relação tão complexa que torna a dança uma bela arte, tamanho virtuosismo e doação necessários para expressar perfeitamente as histórias que bailam sobre o palco. Com ou sem virilidade, balé também é coisa de homem.

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