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O câncer na mira da ciência

O desenvolvimento das chamadas drogas-alvo indica caminhos para desvendar, definitivamente, a doença

postado em 01/01/2012 06:00

Carolina Samorano / Especial para o Correio

O desenvolvimento das chamadas drogas-alvo indica caminhos para desvendar, definitivamente, a doençaO câncer é a bola da vez na medicina. Infecções e epidemias desafiaram médicos e pacientes até a descoberta da penicilina. Complicações cardiovasculares ainda tiram o sono de especialistas, mas a chegada de novos medicamentos e técnicas de cirurgia têm dado conta de boa parte do problema. Agora, vive-se mais, adoece-se mais e é hora dos oncologistas cuidarem do pepino que, estima-se, acometerá uma em cada três pessoas. A boa notícia é que a evolução tem apertado o passo. O último quimioterápico foi desenvolvido já há quase dez anos. Na última década, a cancerologia tem apostado todas as suas fichas em pesquisas de desenvolvimento das chamadas drogas-alvo, mais eficientes e com efeitos colaterais mais brandos. E o ano que passou foi de boas novas: drogas que andavam sendo testadas foram aprovadas aqui e lá for a, e resultados positivos em estudos prometem mais alternativas em breve.

As drogas-alvo não são exatamente uma novidade para oncologistas ; o trastuzumabe, uma das mais antigas do tipo, já tem uma década de glórias contra o câncer de mama. Mas são uma criança se comparadas à quimioterapia, usada desde os anos 1950. A grande diferença entre as duas é que, ao contrário da quimioterapia, um tratamento sistêmico, a droga-alvo é programada para atacar um alvo específico ligado às células doentes. São os chamados marcadores biológicos ; em geral, receptores ou proteínas anormais detectados em exames que esmiuçam a célula tumoral em busca do que, afinal, está errado. ;É como se elas grudassem nessas proteínas mutantes e, assim, ajudassem o corpo a inativar os mecanismos que mantêm as células anormais vivas e se multiplicando;, explica André Sasse, coordenador do Centro de Evidências em Oncologia da Unicamp. É o que os médicos chamam de modelo chave-fechadura. A chave, criada em laboratório, só encaixa na fechadura mutante e, portanto, causa menos danos às células saudáveis.

A grande novidade do ano saída desses laboratórios para as prateleiras das farmácias foi a liberação do crizotinibe nos Estados Unidos, em agosto. A substância é uma droga-alvo bastante eficiente no tratamento de adenocarcinomas que tenham a mutação EML4-ALK, presente em cerca de 4% dos casos diagnosticados. O adenocarcinoma é um tipo de câncer de pulmão chamado de não-pequenas células. Esse tipo da doença é mais frequente em não-fumantes, ou seja, ainda não há medicamento específico para os tabagistas, muito mais vulneráveis ao câncer. Embora o universo de beneficiados seja restrito, os dados são animadores: na fase de testes, o crizotinibe deu resultados em 80% dos casos.Eis a grande sacada da terapia-alvo: é por ser tão específica que é tão eficiente.

;A aprovação dessa droga significa duas coisas;, avalia o oncologista Carlos Gil Ferreira, especialista em câncer de pulmão e coordenador de pesquisa clínica do Instituto Nacional do Câncer (Inca). ;Ela não só trouxe benefícios a uma quantidade enorme de pacientes portadores da mutação, como foi aprovada em tempo recorde. Da descoberta do alvo (a mutação EML4-ALK) até a sua liberação foram quatro anos, quando o tempo médio é de 15;, sublinha. Esse pode ser um sopro de esperança para que outras drogas em estudo sejam aprovadas o quanto antes para a população. No Brasil, o crizotinibe ainda é usado experimentalmente, mas a expectativa é de que passe pelo crivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, ainda este ano.

Assim como a maior parte das drogas-alvo, o crizotinibe consiste em um comprimido e deve ser ingerido uma vez ao dia, em casa ; o paciente não precisa ir até um ambulatório receber a medicação por via venosa, como costumam ser os quimioterápicos. Além disso, os efeitos colaterais são, em geral, mais tranquilos. A maioria dos pacientes enfrenta diarreia, náuseas, dores de cabeça e nas costas, e mudanças no paladar. Nada que se compare, no entanto, à experiência de perda dos cabelos que vem com a quimioterapia. E, ainda assim, os efeitos não são regra. Há quem passe longe deles.

Quimioterapia quem?
O crizotinibe, embora seja uma excelente notícia, não está sozinho no rol de tratamentos direcionados para câncer de pulmão. A evolução do diagnóstico e a percepção de que câncer não é ;tudo igual; trouxe drogas que já caíram na rotina do tratamento oncológico. Há cerca de quatro anos, a quimioterapia convencional perdeu espaço para alternativas como o erlotinibe e o gefitinibe. Os dois são indicados para os 10% de casos de adenocarcinoma em que é encontrada uma mutação do gene EGFR, sigla em inglês para Receptor do Fator de Crescimento Epidérmico. O EGFR é um receptor que fica na membrana da célula e envia sinais de reprodução para o seu núcleo. Esse sinal pode acabar resultando em metástase, quando o tumor se espalha para outros órgãos.

;Hoje, quando é feito o diagnóstico de um adenocarcinoma, é obrigatório o pedido de pesquisa de mutação. Porque, quando você encontra esse tipo de anomalia (EGFR), usar a quimioterapia é perda de tempo;, explica o oncologista Jacques Tabacof, do grupo de câncer de pulmão do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Mas nem sempre é assim. Para o bevacizumabe, por exemplo, uma droga-alvo que impede a criação de novos vasos sanguíneos que alimentam o tumor e que tende a ser eficiente em quase todos os tipos da doença, a quimioterapia é uma aliada se o alvo é o pulmão. Ela potencializa o tratamento. Já contra um tipo de câncer gastrointestinal, em geral, ele dá conta do recado sozinho, sem quimioterapia.

Embora a terapia-alvo já seja uma realidade na medicina, é verdade que, num universo onde o avanço do diagnóstico mostra que a doença é muito mais complexa do que se acreditava, ela ainda beneficia uma parcela relativamente pequena de pacientes. No entanto, o prognóstico é positivo. O que os especialistas pregam é que, em médio prazo, a quimioterapia dará lugar ao uso de drogas-alvo. ;Só para o câncer de pulmão de não-pequenas células, pelo menos 50 novas moléculas estão em estudo e devem chegar ao mercado na forma de medicamento nos próximos cinco a 10 anos;, acredita o oncologista Carlos Gil Ferreira, do Inca.

Na prática, é o mesmo que dizer que, num futuro não muito distante, o cenário do tratamento do câncer como conhecemos há pelo menos sessenta anos estará virado do avesso. Mas um avesso mais bonito do que o direito, acredita-se. Com a compreensão de que cada doença tem sua razão de existir e sua mutação específica, e o desenvolvimento de novas drogas a todo vapor nos laboratórios, não se falará mais em tratamento, mas em tratamentos, no plural. ;A gente não vai mais pensar no câncer como uma doença só;, resume André Sasse, da Unicamp. ;Vamos ter que entender cada vez mais o indivíduo e a doença que ele desenvolveu, para aí sim associarmos drogas que servirão para ele, mas que talvez não sirvam para outros. Esse é o futuro;, finaliza.

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