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O que não tem preço

Na terceira reportagem da série "Longevidade para todos?", a luta dos pacientes com doenças genéticas para obter, muitas vezes na Justiça, os medicamentos que podem lhes garantir mais qualidade de vida

Flávia Duarte
postado em 25/03/2012 08:00

Na terceira reportagem da série Quanto vale a vida de uma pessoa? Quem ousaria tentar responder essa pergunta que já soa ofensiva por insinuar tamanho absurdo ; há dinheiro que pague o direito de viver? Mesmo que não haja dúvidas sobre tal questão, muitos pacientes que convivem com doenças genéticas, especialmente as mais raras, são obrigados a provar, com frequência, o merecimento de usufruir a vida. Precisam se unir em associações e contar com o poder da Justiça para receber medicamentos; implorar para que a burocracia não emperre os trâmites legais e seguros de pesquisas que surgem como promessa de anos mais saudáveis e mais longevos.

Alguns deles, enfrentam a dificuldade de serem vistos pelos milionários laboratórios como alvos de estudos. Se pudessem ser ouvidos, certamente diriam: ;Vocês precisam investir milhões em pesquisas e medicamentos para beneficiar um grupo muito pequeno de pessoas, portadoras de doenças raras, é verdade. Mas nesse pequeno universo, me incluo, e minha vida certamente vale mais do que os muitos dólares gastos para me dar a chance de ganhar mais um dia vivo;.

Na realidade que envolve dificuldades de desvendar o funcionamento do corpo, o dinheiro finito e as expectativas de vida limitadas, surgem guerreiros que lutam bravamente pela vida. Eduardo Próspero, 22 anos, há nove se submeteu a um tratamento inovador, de uma enzima que pode controlar a progressão da doença rara que sofre, a mucopolissacaridose. O estudante Patrick Dorneles, 14 anos, tem uma variação da mesma doença e até mês passado não tinha nenhum tratamento.

Recentemente, ele foi escolhido para participar de testes em Porto Alegre com uma enzima que poderá salvar sua vida. Outros sofrem de males que não têm cura, mas têm tratamento. Para conseguir a medicação, no entanto, precisam da justiça. A lei garantiu há dois anos a qualidade de vida da dona de casa Isoneide Rodrigues de Sousa, 46 anos, que sofre da incurável doença de Fabry e suas dores tão características.

Ela e Dudu conseguiram pela Justiça o direito ao tratamento. Patrick lutou por algo ainda mais distante: a chance de ver aprovada uma pesquisa que pudesse mudar seu destino. Os três conseguiram. Mas nem todos têm a mesma sorte. ;Muitos pacientes nem sequer sabem que têm a doença e que podem conseguir os medicamentos pela judicialização;, lamenta Wanderlei Cento Fante, fundador presidente da Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e seus Familiares, que tem cadastrados 180 pacientes em todo país.

A doença da Isoneide provoca a incapacidade do organismo de decompor uma substância de nome complicado, a globotriaosilceramida, também chamada de Gb3. Ela está presente em muitas células do corpo, especialmente nas membranas dos glóbulos vermelhos e, se não é decomposta, por falta de uma enzima, se acumula em órgãos importantes, como rins e corações, e pode obstruir vasos sanguíneos. O risco é comprometer o funcionamento dos sistemas vitais do corpo ou de adoecer fatalmente o coração. Na melhor das hipóteses, provoca muitas dores inexplicáveis, como no caso de Isoneide.

A pessoa nasce com a doença, mas os sintomas podem se manifestar na idade adulta. Ela não sabia mais o que fazer para se livrar do tormento que deixava as pernas e as juntas latejantes. A dor de cabeça também não dava sossego. A pressão, de repente, começou a subir. ;Tem dias que nem queria levantar da cama. As pessoas achavam que era frescura. Com o diagnóstico, ficou tudo explicado;, comenta, aliviada.

Ela só encontrou a explicação de tantos males depois que um tio foi diagnosticado, lá em Teresina, com a doença de Fabry . Por ter origem genética, a médica recomendou que toda a família fosse avaliada. Isoneide, a filha e as irmãs dela também portavam o gene defeituoso. A briga passou a ser, então, pelo medicamento. Ele existe, mas não está incluído na lista dos distribuídos pelo SUS. Para conseguir, é preciso solicitá-lo ao juiz, mediante a apresentação de muitos laudos que confirmem que a pessoa tem a doença. Há dois anos, ela obteve o direito de se tratar e periodicamente deve renovar seu cadastro para garantir a droga que atenua os sintomas da doença.

Ela não é a única. Muitos pacientes de doenças genéticas enfrentam a judicialização do tratamento. Isso porque muitos deles são importados e caros demais. Para serem distribuídos pelo governo precisam ser analisados antes. O Ministério da Saúde avalia o custo e o benefício da droga. Precisa saber se o investimento de fato fará diferença na vida dessas pessoas. O medicamento precisa ser comprovadamente eficiente e aprovado pela Anvisa.

Não pode ser novidade e não ter todos os riscos controlados. E o mais importante: ;De nada adianta incluir mais medicamentos se não há uma rede de atenção para cuidar e acompanhar esse paciente;, reconheceu o ministro da saúde, Alexandre Padilha, durante o seminário do Dia Mundial de Doenças Raras, no último dia 29 e fevereiro, em Brasília.
Além disso, muitos são importados, e por isso pesam no orçamento. Alguns são chamados medicações órfãs, as únicas existentes para doenças específicas. ;Não queremos continuar importando medicamentos. A ideia é incorporar tecnologia no Brasil para que eles sejam produzidos no país;, afirmou o ministro, durante o mesmo evento.

É preciso pesquisar
Na terceira reportagem da série Para que novos tratamentos sejam desenvolvidos, e mais pacientes sejam beneficiados com as descobertas, e escrevam história semelhante a de Dudu, é preciso investimento em pesquisas. No Brasil, quase não há incentivo para tentar desvendar os misteriosos erros do DNA. A burocracia para desenvolvê-las também não ajuda.

Por aqui, há uma determinação segundo a qual todas as pesquisas que envolvem seres humanos precisam de aprovação do sistema CEP/Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), ligado ao Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. Um grupo de profissionais, de formação variada, integra essas comissões que analisam a ética e segurança de tais estudos e dão parecer sobre os riscos de cada pesquisa. Se envolvem medicamentos, o estudo precisa ser aprovado pela Anvisa também.

Todos esses trâmites, porém, levam tempo além da conta. ;A questão é que esse processo tem se tornado moroso demais. Que controle é esse que demora um ano para aprovar um medicamento e, enquanto isso, deixa um paciente morrer?;, critica, Greyce Lousana, presidente executiva da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica (SBPPC).

O Ministério se defende, e garante que algumas mudanças foram adotadas para ampliar o número de pesquisas aprovadas. Com tal fim, será feito, entre outras coisas, um investimento de R$ 10 milhões no sistema CEP/CONEP previsto para 2012; o número de conselheiros passou de 15 para 30 titulares e cinco suplentes; além de ter sido criada a Plataforma Brasil, em setembro do ano passado. ;Uma ferramenta que dá maior transparência ao trabalho da Conep e deve acelerar o processo de aprovação de testes com novos medicamentos envolvendo seres humanos no País;, afirma documento do Ministério.

A expectativa é de as iniciativas realmente funcionem. Em alguns casos, o desgaste para ter uma chance de ser tratado é grande. Aos 14 anos, Patrick Dorneles emana uma energia e uma alegria singular. Foi o desejo de viver e ajudar os outros que o fez sair de João Pessoa, onde mora, e viajar para Brasília na tentativa de convencer o governo a aprovar a pesquisa em fase 2, que testa medicamentos em seres humanos. Essa seria a única chance de controlar o mal genético que carrega. Ele é portador da mucopolissacaridose 4A de Patrick, um tipo que ainda não pode ser controlada pelas injeções de enzimas.Como ele, cerca de 112 pessoas no Brasil sofrem do mesmo mal.

Patrick participou de palestras na capital, visitou gabinetes no Congresso, sensibilizou políticos. A esperança chega agora, depois de quase um ano de tentativas para que o Ministério aprovasse a pesquisa feita pela Rede MPS Brasil, coordenada pelo Serviço de Genética Médica do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, em parceria com um laboratório da Califórnia. Eles escolheram 22 pacientes brasileiros para aplicar uma nova droga que pode fazer com que Patrick esbanje sua alegria por muitos e muitos anos. ;A pesquisa ficou emperrada no Brasil por quase um ano;, lamenta médico Roberto Giugliani, mais uma vez à frente de um estudo inovador.

Patrick embarcou para o Sul, receberá a medicação e será monitorado por seis meses para avaliar o progresso. ;A expectativa é que o tratamento interrompa a progressão da doença;, acredita doutor Roberto. Com ele, o adolescente levou alguns amigos. ;Não aceitaria se eles não fossem incluídos no teste, não aguento mais vê-los morrer;, diz, com uma generosidade tão rara.

O menino de sorriso cativante tem 1,07m. Pesa 30kg. A limitação do desenvolvimento do corpo é consequência da MPS. Ele tem o corpo meio ;torto;, como ele mesmo descreve. O caminhar está cada vez mais comprometido. Também enxerga mal, mas ;agradeço todos os dias a Deus pela minha vida e não reclamo;, garante. ;E tem tanta gente que não quer sair de casa porque o cabelo está assanhado ou amanheceu com uma espinha no rosto;;, lamenta.

Quando nasceu, os pais receberam a notícia de que o menino poderia ;morrer com 3, 7 ou 10 anos;, lembra-se o pai Everto Dorneles. Mas ele contrariou as piores expectativas e segue brigando pela vida. Para tentar levar uma rotina o mais normal possível, vai ao cinema e ao boliche com os amigos. Ele faz teatro na escola, sonha em ser designer ou ator. ;Só não namoro porque elas não me querem;, brinca, bem humorado. Seu maior sonho é que seu organismo responda ao tratamento e o permita viver mais ou, no mínimo, com mais conforto e menos limitações. ;Não consigo pensar só em mim.

Quero ver os outros melhorando também. Todos nós temos uma missão na vida e acredito que a minha é levar o bem ao próximo;, afirma, esse pequeno dono de um imenso brilho.

Na edição impressa, leia a íntegra da matéria, conheça a história de Eduardo Próspero, 22 anos, portador de mucopolissacaridose, saiba como anda o processo de inclusão pelos SUS dos medicamentos para doenças genéticas mais procurados por via judicial.

Leia na quarta e última reportagem da série ;Longevidade para todos?; saiba como é a difícil rotina de quem convive com um diagnóstico de doenças raras e sem cura. A única alternativa nesses casos é buscar cuidados paliativos.

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