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A infância entre agulhadas

Receber ainda pequenas o diagnóstico do diabetes tipo 1 não é fácil para as crianças nem para os pais. Mas, graças aos avanços médicos, é possível conviver com a doença sem grandes traumas

Flávia Duarte
postado em 20/05/2012 08:00

Receber ainda pequenas o diagnóstico do diabetes tipo 1 não é fácil para as crianças nem para os pais. Mas, graças aos avanços médicos, é possível conviver com a doença sem grandes traumasAdoecer, definitivamente, não faz parte dos planos de vida de ninguém. Mas nem sempre a saúde perfeita é uma escolha. Defeitos no funcionamento do organismo comprometem a rotina de quem convive com males crônicos. É o caso do diabetes que começa na infância. Incapaz de produzir insulina, os pequenos vão crescer com a tarefa diária de aplicar o hormônio que o corpo não fabrica. Os pais sofrem. Têm medo de falhar nos cuidados que, ao mínimo descuido, podem levar a consequências fatais. A garotada aprende a conviver com as agulhadas e as restrição da dieta. Se a família tranquilizar, eles vão entender que dos males o menor. A doença é desgastante, não tem cura, mas tem tratamento e permite que esse(a) menino(a) cresça saudável.

;Não faça uma daquelas matérias que dizem ;oh, coitadas das crianças diabéticas. São frágeis e proibidas de um monte de coisas;, porque tudo isso não é verdade. Diabetes nunca me impediu de fazer qualquer coisa. É só ter mais cuidado. Minha mãe foi soberba nisso e há 40 anos teve de contrariar muitos profissionais de saúde que queriam que ela me tratasse como incapaz;, afirma Jane Dullius, 50 anos. Ele descobriu na infância que era diabética e é uma das responsáveis atualmente pelo projeto Doce Desafio, que funciona no Centro Olímpico da Universidade de Brasília. Lá, eles oferecem palestras, cursos e atividades físicas para diabéticos.

Como ela, muitas crianças recebem o diagnóstico da doença todos os dias. É grave, exige cuidados. O que vem mudando, no entanto, é a forma de driblá-lo. Endocrinologista da Universidade de São Paulo, Freddy Eliaschewitz explica que crianças sofrem com o diabetes tipo 1. É quando o corpo não produz a insulina e a reposição se torna a única chance de sobreviver. Segundo ele, cerca de 1 milhão de pacientes no Brasil, aproximadamente 10% dos diabéticos, tem a doença do tipo 1.
Jane tem razão ao reforçar que crianças que convivem com a falta de insulina no sangue não devem ser tratadas com piedade. Ninguém teria a ousadia de dizer que é não é diferente a vida de quem precisa levar algumas injeções de insulina, medir a glicemia de cinco a oito vezes por dia e transformar a hora das refeições em uma verdadeira matemática da sobrevivência. Mas é possível comemorar os ganhos no tratamento da doença.

Basta voltar no tempo. E nem precisa ir tão longe. Até 1921, a imagem de uma criança diabética era descrita como uma criatura esquálida, apática e com pouco tempo de vida. Foi quando a descoberta da insulina chegou para revolucionar a medicina e mudar o destino desses pacientes. Eles passaram a viver mais e melhor. Uma vida normal, com controle, claro. Mas o que importa a regra quando ela vale sua sobrevivência com saúde?

Maria Eduarda Porto, de 11 anos, desde os 3 anos convive uma rotina um pouco diferente das amigas de mesma idade. Ela tem diabetes tipo 1 e, para manter-se bem, precisa aplicar doses constantes de insulina. Aprendeu com o tempo a injetar o hormônio que leva a glicose dos alimentos para dentro das células. Um combustível essencial para manter o corpo em pleno funcionamento. Não reclama, e brinca que as amigas se reúnem para vê-la, com destreza, furar delicadamente a ponta do dedo e coletar a gota de sangue que irá dizer como andam as taxas de sua glicose; se deve ou não aplicar a insulina ou até mesmo ingerir algo doce. Caso contrário, poderá ter uma baixa repentina de glicose e até entrar em coma.

;A instabilidade faz parte da doença. A alternância de hipo (falta de açúcar) e hiper (excesso de açúcar) normalmente está associada a ingestão alimentar inadequada em gordura e correção errada de hipoglicemia, com muito alimento de alto valor calórico. A pessoa precisa conhecer alimentos gordurosos que sobem muito a glicemia e saber contar carboidratos. Além disso, a insulina basal, apesar de não fazer picos, pode ter efeito variável nas 24 horas;, explica a endocrinologista Denise Iezzi, coordenadora do Centro de Diabetes do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.

Justamente a imprevisibilidade do diabetes tipo 1 é o que deixa os pais inseguros. Denise diz que muitos ficam apreensivos de como irão monitorar as taxas de insulina e a contagem de carboidratos ideais a serem consumidos. A mãe de Maria Eduarda, a analista de sistemas Márcia Porto, 48 anos, não nega que bateu o desespero ao saber que era justamente essa soma que definiria quão melhor sua filha viveria. Quando descobriu que sua primogênita tinha o diabetes tipo 1, ela pesquisou, estudou tudo sobre o problema, aprendeu a controlar as variações de glicose e ensinou à filha a fazer o mesmo. ;Ainda falta informações sobre como lidar com o problema. Muitas vezes são os pais que precisam ir atrás para aprender por conta própria;, diz.

Maria Eduarda já sabe analisar pelo resultado das medições de glicemia se pode comer mais ou menos. De madrugada, Márcia tira a gota de sangue do dedo da menina. Ela tem medo que durante a noite a glicose baixe demais e o corpo da menina entre em pane. Não são raros os casos de coma por causa do diabetes tipo 1. Se está baixo demais, ela coloca meu na boca da menina sonolenta, que nem reclama de algo que para ela é normal. Deverá ser assim pelo resto da vida. ;O temor de hipoglicemia é algo que os pais vivenciarão sempre, mesmo quando a variabilidade da glicemia é corrigida, ou seja, os picos e as quedas da glicose. Isso pode acontecer se a quantidade de insulina basal (as de longa ação) estiver alta, se o total de carboidratos está insuficiente, se houve uso de insulina rápida ou ultrarrápida antes do jantar ou mesmo antes de deitar;, explica a endocrinologista Hermelinda Pedrosa, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes no Distrito Federal.

Por isso mesmo, as crianças precisam de autonomia para saber lidar com os imprevistos. Maria Eduarda, dia desses, viajou com as amigas da escola. Semanas antes, treinou, com a orientação da mãe, como deveria se cuidar sem os pais por perto. Programou o celular para acordar de madrugada e fazer a própria medição. ;Os pais têm que estimular essa independência nas crianças e dar a elas ferramentas para se cuidarem;, afirma Jane Dullius, do Programa Doce Desafio, que este mês começa a abrir turmas para crianças diabéticas, justamente para ensiná-las a lidar de forma segura com a doença (veja serviço). ;Esse supercontrole pode levar a criança a se sentir insegura em relação à sua competência. Ela aprende que precisa se cuidar, pois o pai ou a mãe não farão isso para sempre;, acrescenta Jane.

Alguns confortos
A angústia dos pais é ver o filho tomar três ou mais injeções diárias. Sem falar nas pontas de dedos espetadas entre três e oito vezes por dia para fazer o controle da glicose. Soma-se a isso, o medo de não saber calcular a quantidade certa de comida ingerida e da insulina necessária para dar conta de metabolizar os carboidratos.

Por isso, alguns aplicativos e acessórios foram desenvolvidos com o objetivo de facilitar a monitorização e a insulinização rotineira. ;Há 20 anos, fervia-se a urina com reagente para saber como estava o controle do diabetes;, relembra o endocrinologista Mauro Scharf, endocrinologista e chefe do serviço de endocrinologia pediátrica do Hospital Nossa Senhora das Graças, de Curitiba. Hoje, isso é feito com uma picadinha no dedo e a coleta de uma gota de sangue. Um aparelho digital mostra imediatamente a dose de glicose no sangue.

A aplicação de insulina também está menos dolorida. Atualmente, há disponíveis canetas aplicadoras com agulhas minúsculas e indolores. O problema é que elas precisam ser compradas. O governo só distribui gratuitamente as injeções normais, que, para as crianças, se tornam um martírio a mais.

Outro conforto para o controle do diabetes tipo 1 na infância são as Smart Pumps, um sensor que monitora a glicemia em tempo real. A bomba é ligada ao corpo por um cateter e uma agulha subcutânea. O aparelho faz a função de um pâncreas. A cada refeição, o paciente informa a quantidade de carboidratos que será ingerida e programa a bomba para liberar a insulina necessária.

Para ajudar a contabilizar as doses certas de insulina, também foi lançado, no primeiro dia de maio deste ano, o aplicativo Diamigo. A tecnologia foi desenvolvida para iPhone e iPod e, em breve, poderá ser usada no iPad. Ela ajuda a calcular automaticamente a quantidade do hormônio a ser aplicada. Para isso, basta digitar a refeição que será consumida. O aplicativo gera um relatório periódico com o perfil do paciente, que poderá ser enviado por e-mail para os médicos. Uma facilidade a mais para essas crianças e adolescentes tão acostumadas à tecnologia.

Diagnóstico rápido
Receber ainda pequenas o diagnóstico do diabetes tipo 1 não é fácil para as crianças nem para os pais. Mas, graças aos avanços médicos, é possível conviver com a doença sem grandes traumasUm dos maiores desafios para o controle do diabetes em criança é justamente o diagnóstico. Muitos pais ; e até mesmo certos profissionais ; nem desconfiam que a doença autoimune, como é o caso do diabetes tipo 1, ataque tão cedo o frágil organismo infantil. No primeiro momento, a cada sintoma, inicia-se a peregrinação por consultórios médicos de diferentes especialidades, entre pediatras, nutricionistas, endocrinologistas e até dermatologistas, já que a doença pode provocar alterações na pele, como o aparecimento de furúnculos.

Sede excessiva, perda repentina de peso sem causa aparente, vontade exagerada de urinar, cansaço, falta de energia são alguns dos sintomas mais comuns provocados pela deficiência de insulina no organismo. O quadro mais grave é a cetoacidose, quando a criança entra em coma, pelo fato de o organismo ter se mobilizado para tentar reverter a disfunção metabólica.

Presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes no Distrito Federal e responsável pela Coordenação do Diabetes da Secretaria de Saúde do DF, a endocrinologista Hermelinda Pedrosa explica que muitos pais só descobrem que a criança sofre de diabetes tipo 1, quando chegam ao hospital com esse quadro metabólico dramático. ;As causas da doença estão relacionadas a erros de codificação de determinados genes. No entanto, fatores externos, como estresse ou algum tipo de vírus, podem deflagrar o processo;, explica a médica. O resto não se explica. Uma pessoa pode ter o gene e não desenvolver a doença, por exemplo.

Descoberta a causa da descompensação, é hora de correr contra o tempo e reabilitar o organismo. Como esses pacientes ainda são muito pequenos, resta aos pais aprenderem como dosar a insulina e calcular os carboidratos que serão administrados diariamente. Hermelinda garante que essa etapa inicial sempre é marcada por insegurança e medo, afinal, a vida desses pequenos depende a vigilância dos adultos.

A comissária de bordo Naiara Andrade, 22 anos, também enfrentou a saga de passar por diversos consultórios médicos para descobrir o motivo de sua filha Manuela, 3 anos e 11 meses, andar tão triste e estar perdendo peso inexplicavelmente. Na época, ela tinha 1 anos e alguns meses. Naiara conta que nenhum médico desconfiou do diabetes. ;Nenhum deles sequer me pediu o exame de glicemia;, relembra.

Foi quando ela associou os sintomas da criança aos que viu o irmão enfrentar na infância. O tio de Manuela também tem diabetes tipo 1 desde pequeno e hoje é um rapaz saudável, cuidando de suas necessidades. Naiara, ainda que preocupada, sabia então que a doença podia ser enfrentada e, com os cuidados certos, sua bebê cresceria normalmente. ;Nesse processo, meu irmão e minha mãe me tranquilizaram muito;, relembra.

Passado o susto, Naiara já aprendeu a identificar as mais sutis alterações no quadro de saúde da filha. Como toda mãe zelosa, sabe o significado de cada choro de Manuela. ;Se ela pede comida, por exemplo, sei que precisa de glicose.; Quando a menina gripa, tem certeza de que precisará aumentar a quantidade de carboidratos na refeições da pequena para evitar a fraqueza do organismo. ;Se a garganta fecha, ela não quer comer e fica tudo alterado;, explica.

É que na infância, qualquer mudança de rotina se reflete na quantidade de glicose no sangue. Uma simples brincadeira pode exigir doses extras de comida para evitar a exaustão do organismo, que não consegue absorver a glicose naturalmente. Até um dia de chuva, sem atividades físicas, por exemplo, pode demandar doses extras de insulina para evitar que a energia não gaste e descompense o corpo. ;Insulina errada baixa tanto o açúcar que leva à hipoglicemia. Estresse aumenta a glicemia, que pode levar ao coma diabético. Para tomar a insulina, é preciso saber a idade certa, a quantidade certa, se a criança faz esporte. Tem várias formas de aplicar a insulina, que varia muito com o estilo de vida do paciente;, explica Mauro Scharf.

Entenda a doença
- A glicose precisa da insulina, substância fabricada no pâncreas, para entrar nas células. A falta da insulina ou problemas com sua eficácia atrapalham o processo. Quando a glicose não é bem usada pelo organismo, ela se eleva no sangue. É o que chamamos de hiperglicemia.
- No diabetes tipo 1, não há fabricação de insulina pelo pâncreas ou sua produção é insuficiente. As células betas do pâncreas são lentamente destruídas por um processo autoimune do organismo. Isso acontece porque o organismo as identifica como corpos estranhos.
- Os pacientes com diabetes tipo 1 precisam tomar insulina diariamente para regularizar o metabolismo do açúcar do sangue. Tem uma insulina basal lenta, aplicada ao acordar, e outra acelerada, que se aplica antes de comer para controlar a glicemia.
Fonte: Sanofi Diabetes

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