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Relatos de uma vida missionária

Voluntárias da organização Médicos sem Fronteiras falam sobre as missões em locais onde falta tudo, menos a intensa emoção de ajudar o próximo

postado em 16/09/2012 08:00
Por Juliana Contaifer
Voluntárias da organização Médicos sem Fronteiras falam sobre as missões em locais onde falta tudo, menos a intensa emoção de ajudar o próximo
;A gente pode falar a língua que for, mas a linguagem universal é o amor mesmo. Apliquei a anestesia e esse senhor pegou minha mão e levou nos seus dois olhos, na testa e depois no coração entoando algo que parecia uma reza e começou a chorar. Não precisei de tradução para entender que ele estava me agradecendo. Aquilo me marcou muito.; Liliana Mesquita

Elas largam tudo para ajudar o próximo. Deixam para trás famílias, amigos, empregos, vaidade, água quente e energia elétrica. Aventuram-se na savana africana, no Oriente Médio, na América Central e em países gelados da Europa para assistir pessoas com Aids, tuberculose, vírus ebola, desnutrição, muitas sem qualquer esperança de mudar de vida. As voluntárias são luzes em meio à escuridão. Profissionais que dedicam o conhecimento acumulado e a boa vontade para ajudar.
No Brasil, a organização Médicos sem Fronteiras chegou há 20 anos, com uma missão estrangeira, para trabalhar na Amazônia. Abriu escritório no Rio de Janeiro em 2006. Cerca de 100 brasileiros são voluntários. Em Brasília, duas psicólogas e uma médica anestesista doam o tempo e a experiência à causa. Têm aquele brilho nos olhos, próprio de quem faz o que gosta e se emocionam ao contar suas histórias. Apesar de todas as dificuldades, não pensam em parar. Aqui, os relatos dessas três guerreiras.

Foi uma experiência ruim que levou a médica Liliana Mesquita, 37 anos, a entrar nos Médicos sem Fronteiras. Em um curto espaço de tempo, Liliana perdeu os pais e um irmão. ;Nessas horas, a gente pensa o seguinte: ou você se revolta contra a vida e acha que nada vale a pena ou você tenta transformar aquele sofrimento em algo positivo;, explica. A madrinha da irmã de Liliana sugeriu os Médicos sem Fronteiras, e assim começou o caminho da médica anestesista, uma das especialidades mais raras na organização. ;Foi um divisor de águas na minha vida. Eu estudei para aliviar o sofrimento humano, independentemente de religião ou nacionalidade ; a vontade é de fazer pelo outro o que você seria capaz de fazer por você mesmo.; Em março de 2010, a médica entrou para a organização.
Para ela, não é fácil viajar para as missões, uma vez que trabalha em vários hospitais em Brasília. A cada viagem, é preciso trocar plantões, negociar folgas e abonos para passar um mês fora. ;Tem colegas que querem ir, mas não podem, e fazem meus plantões porque querem fazer o que podem para que eu possa ajudar quem precisa;, explica.
O trabalho de um anestesista é imprescindível em qualquer cirurgia, seja ela de qualquer natureza. A primeira missão de Liliana foi para o Haiti, em 2010, depois do terremoto. ;Foi uma grande realização, mas tive que voltar antes da hora porque fiquei doente;, lembra. Depois, a médica já foi para a República Centro Africana, duas vezes para o Paquistão, o Sudão e a Faixa de Gaza. De todas as experiências, as mais impactantes foram as da África. ;É uma realidade muito distante da que estamos acostumados. É um lugar onde não há luxo nem conforto. A gente come porque tem que comer, levanta porque tem que levantar, faz tudo por necessidade. Foi muito estranho pensar que eu era a única médica anestesista em um raio de 100km;, lembra.
Mas Liliana se apaixonou mesmo pela cultura árabe. Usou burca e adorou, desmistificou a ideia que tinha sobre os palestinos. O desafio era grande e a sensação de chegar a um lugar que estudou na escola e sobre o qual sempre leu muito, foi fantástica. ;Me emocionei muito quando desci na Faixa de Gaza, é o centro do mundo, as três maiores religiões estão ali. As pessoas dizem que é a maior prisão do mundo e você vê que é aquilo mesmo, não dá para acreditar que você está naquele contexto;, explica. E foi lá que Liliana atendeu os dois pacientes que mais marcaram sua vida.
O primeiro foi um senhor de mais de 100 anos, que não falava inglês, apenas um dialeto local. Ele tinha uma hérnia e precisava ser operado para tirá-la e acabar com a dor que sentia. Liliana pediu para o pessoal da enfermagem falar para ele que estaria ali o tempo inteiro, que o senhor não estaria sozinho. ;A gente pode falar a língua que for, mas a linguagem universal é o amor mesmo. Apliquei a anestesia e esse senhor pegou minha mão e levou nos seus dois olhos, na testa e depois no coração entoando algo que parecia uma reza e começou a chorar. Não precisei de tradução para entender que ele estava me agradecendo. Aquilo me marcou muito;, lembra a médica.
O outro paciente foi um menino de 3 anos que, vítima de uma explosão, teve parte do rosto queimada. Na primeira cirurgia, adquiriu uma infecção e teve que repeti-la. Ele voltava ao centro médico de dois em dois dias para trocar os curativos. ;No meu último dia, a mãe dele, que falava um pouco de inglês, me deu um véu e colocou na minha cabeça, chorando. Comecei a chorar também, claro. E aí ela explicou para o menino, em árabe, que aquele era meu último dia. Ele só me disse ;I love you;. Aí que comecei a chorar mais ainda;, lembra. Para Liliana, fazer trabalho voluntário é receber um salário emocional.
Nessas zonas de risco, o medo é constante, mas deve ser controlado. A médica conta que não tem medo de morrer, mas sim de perder algum paciente ; o que ainda não aconteceu. Na missão do Paquistão, Liliana teve um dia típico de filme. ;Há uma semana tensa no calendário islâmico, e, em um dia dessa semana, ocorrem muitos conflitos. Nos preparamos para aquele dia, evacuamos quase todo mundo para outra cidade e só ficamos eu, o cirurgião, o chefe da missão e um auxiliar de enfermagem. Acordamos com um bombardeio, helicópteros sobrevoando o local. Nesse dia, tive medo por um milésimo de segundo. Depois, pensei que aquelas pessoas precisavam de mim, e meu medo não podia ser maior do que a necessidade delas;, lembra.
Liliana viu crianças mortas chegarem ao hospital. Teve que sair do centro cirúrgico para a sala de emergência e ajudar a reanimar vítimas, procurar veias, separar os casos mais críticos. Foi um plantão de 24 horas sem comer ou ir ao banheiro, sem outros profissionais para pedir ajuda ou dividir a responsabilidade.
Uma experiência que muita gente acha que pode traumatizar uma pessoa, na verdade só faz impulsionar essas mulheres sem fronteiras. Para elas, não há como explicar em palavras o sentimento de realização que sentem. ;Só indo pra saber como é. Sensação de dever cumprido, é um enriquecimento profissional muito grande, mas é uma experiência de vida, um crescimento. Encontrei o verdadeiro significado do amor ao próximo;, afirma a médica. Liliana não pensa em parar. Já trabalhou com voluntários de 80 anos, com médicos aposentados que moram no Havaí e passam um mês por ano colocando seus conhecimentos ao dispor de quem precisa e, se essas pessoas continuam trabalhando, Liliana acredita que também pode. ;Enquanto eu tiver condições, estou indo.;
Leia a matéria na íntegra, na edição impressa da Revista n; 383

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