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A voz das florestas

Técnica em enfermagem, bacharel em letras, pós-graduada e índia. Sônia Guajajara assumiu o papel de apresentar ao mundo a cultura e as necessidades do povo dela

postado em 23/12/2012 08:00
Técnica em enfermagem, bacharel em letras, pós-graduada e índia. Sônia Guajajara assumiu o papel de apresentar ao mundo a cultura e as necessidades do povo delaÍndio come gente? Anda pelado? Vira bicho? Essas são algumas perguntas que fizeram a Sônia Guajajara, 38 anos, quando, aos 15, ela foi morar em um lugar completamente diferente da terra indígena de Araribóia, no município de Amarante (MA), onde nasceu. Na cidade mineira de Esmeralda, a adolescente já sabia se desviar da ignorância e do preconceito, a fim de abrir caminho à compreensão. A partir daquele momento, os horizontes cresceram aos olhos da índia que soma os diplomas de técnica em enfermagem, bacharel em letras/literatura e ainda uma pós-graduação em educação especial pela Universidade Estadual do Maranhão. De todas essas conquistas, uma se tornou especial: a luta pelos direitos dos povos indígenas do país.

Sônia falou à Revista quando estava de passagem por Brasília, para uma palestra na conferência de Tecnologia, Inovação e Inclusão nas Florestas, promovida pelo Serviço Florestal Brasileiro, dias atrás. Vice-presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia e líder da Associação dos Povos Indígenas do Brasil, em seu discurso ela promete: não vai descansar até que os índios tenham direito à voz, à terra e à autonomia.

De menina em uma tribo indígena, a uma das mais importantes vozes na luta pelos direitos indígenas. Como foi essa passagem?
Enquanto menina, achava tudo muito difícil. Morava num lugar sem estrada, sem energia ou água encanada. Sonhava em sair, conhecer outros lugares, mas não sabia como. No meio indígena, a gente se casa muito cedo, aos 12 ou 13 anos. Só que eu queria estudar. Como não tínhamos computador ou televisão, lia as revistas que pessoas de fora levavam para a aldeia. Aos nove anos, concluí a quarta série e tive que sair para um município próximo a Amarante, para continuar estudando. Minha mãe nunca leu ou estudou, mas ela sempre se preocupou em dar educação para a gente. Não consegui ficar longe por muito tempo, então, voltei para Amarante e fiquei na casa de uns tios. Estudei e me mantive trabalhando em uma casa de família. Até os 15 anos, trabalhei para estudar. Foi quando recebi um convite da Funai para fazer o ensino médio em Esmeralda (MG). De cara, topei, apesar de a minha mãe, avó e tias serem contra. Foi a primeira vez que vi asfalto (risos). Chegando lá, todos queriam saber quem era a índia. Foi aí que percebi que meu povo e minha cultura eram diferentes.

Você já sonhava em ser uma articuladora da causa indígena?

Essa postura foi natural. Meu trabalho e minha atuação na Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima) já me incluía em debates e discussões. Consegui colocar o Maranhão em vários conselhos: estadual e nacional, de segurança alimentar, de igualdade racial, de meio ambiente. E com isso, naturalmente, fui crescendo dentro do movimento. Tanto que, na última eleição da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), todos falaram que eu tinha de assumir algum cargo. Para mim, foi difícil porque eu não queria ir para Manaus. Mas houve um consenso dos estados do Maranhão, Tocantins, Roraima, Pará e Amapá, que decidiram me apoiar e não teve como dizer não.

Foi aí que você começou a viajar pelo mundo para falar sobre as demandas das tribos?
Em 2008, fui a Nova York para o fórum permanente da ONU sobre questões indígenas. Levava as demandas nacionais: a criminalização das lideranças indígenas, a violência nas comunidades. Com isso, fui ganhando reconhecimento no Brasil pois eu falava por todos. Em 2009, assumi a Coiab e continuei a fazer as viagens. Comecei a discutir a questão das mudanças climáticas. De 2009 para cá, fui a todas as Conferências do Clima da ONU: Copenhagen (Suíça), Cancún (México), Durban (África do Sul) e agora, Doha(Catar). Também participei da Rio%2b20, onde fui a articuladora geral. Participamos não oficialmente da conferência e organizamos uma mobilização para estar junto com a Cúpula dos Povos, na qual reunimos 1.800 indígenas, para discutir o que é economia verde, mercado de carbono e o que esses assuntos significam para nós.

Um momento emblemático na sua trajetória foi a entrega de uma motosserra para a senadora Kátia Abreu. Como foi?
Foi em 2010, na Conferência do Clima em Cancún. Discutíamos o Código Florestal e fazíamos várias mobilizações contra as alterações nele. Indígenas, Ongs e ativistas ambientais pensaram em uma ação que tivesse uma repercussão na mídia para demonstrar essa insatisfação. Decidimos dar a ela um %u201Cprêmio%u201D, mas ninguém queria dar a cara a tapa. Eu disse que ia sem problemas. Nos hospedamos no hotel em que a senadora estava. Na porta de saída, onde havia várias pessoas, tiramos da mala a motosserra de ouro para premiá-la. Falei assim: %u201CEsse é o seu prêmio por tudo o que você está fazendo pelas florestas do Brasil, senadora%u201D. Claro que ela ficou muito chateada e escreveu no Twitter: %u201CHoje acordei com uma brincadeira de muito mau gosto. Nós estamos aqui para discutir e construir com quem quer, não com quem quer apenas criticar%u201D. Não é fácil fazer um ato desse e não ser criminalizado.

E quais são as principais reivindicações dos povos indígenas?
Para a gente, o conceito de economia verde é ter condições de manter a floresta preservada e usar os recursos do meio ambiente de forma sustentável, como fazemos. Milenarmente, os povos indígenas vivem na floresta e sabem como cuidar sem destruir. Mesmo assim, não temos condições de fazer isso porque há exploração ilegal de terras e invasões. Nossa bandeira principal é a questão dos territórios e as condições para se viver na floresta mantendo-a viva. Muita gente diz que o índio não precisa da terra, porque ele não vai aproveitar. De fato, por muitos anos vivemos sem fazer nenhum tipo de trabalho, aproveitamento ou extrativismo. Vivíamos apenas do que a natureza oferece. Só que hoje, vemos essa questão de uma forma diferente. A gente também sabe usar os recursos naturais de uma forma sustentável. Queremos que a política nacional de gestão ambiental e territorial das terras indígenas seja implementada. Passamos três anos discutindo essa política, até que nesse ano ela foi assinada pela presidente Dilma e agora queremos que essa decisão se concretize.

Para isso, é importante estar nas redes sociais?

Não tenho Twitter, mas estou no Facebook, onde coloco textos e fotos de trabalhos e ações do movimento. Muita gente me procura para saber mais a respeito. Agora mesmo, estava falando de um pacote de medidas que vem aí e que vai contra os direitos indígenas: a portaria 303, publicada pela AGU. O movimento indígena todo está mobilizado para pedir a revogação dessa portaria, que inclui três pontos cruciais: limita o usufruto dos povos indígenas sobre os territórios, tira a autonomia indígena e abre um precedente para a revisão das terras demarcadas. Se hoje a gente luta para aumentar a demarcação das terras é porque muitas tribos no Sul e no Nordeste foram retiradas de suas terras de origem. Já a PEC 215 quer tirar as decisões sobre a demarcação das terras indígenas do poder Executivo, que no caso é a FUNAI, e passar para o Congresso Nacional. Há também um projeto de lei da mineração que está para ser aprovado e pretende fazer a exploração nas nossas terras.

Você acha que ainda falta muita informação nas escolas e nos meios de comunicação sobre a diversidade cultural dos povos indígenas no Brasil?
Falta e muito. Hoje fazemos esse enfrentamento com o governo e muitos não sabem sobre os povos. Já escutei em Manaus: %u201CAinda tem índio aqui?%u201D. Isso na cidade onde há maior concentração de indígenas do Brasil. A maioria acha que o índio é aquele no mato, pintadinho e que tem que ficar lá. Muitos acham que quem saiu e estudou não é mais índio. Me falam que eu não sou mais índia porque não moro mais na aldeia. Mas se você nasceu índio, você vai morrer índio. Claro que muitos indígenas saem da aldeia e se esquecem das tradições. Mas aqueles que saem para defender, para ajudar, continuam sendo índios. Muitos dizem que não devemos nos integrar à sociedade. Isso não nos impede de usufruir do que está aqui, porque também somos cidadãos e temos direitos. Isso não vai mudar a identidade do nosso povo. As pessoas precisam, realmente, conhecer essa diversidade. Somos 250 povos que falam 185 línguas diferentes. Não é porque sou índia que eu vou conseguir falar com todos os índios. A língua dos Guajajara é o tupi-guarani. Ainda falo, não com tanta fluência, mas a língua está preservada dentro das aldeias, tanto que muitos indígenas nem falam o português. Minha raiz está ali e é para lá que posso voltar.

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