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Religião à flor da pele

No domingo de Páscoa, o exemplo de pessoas que conseguem renovar a fé por meio de experiências práticas. Meditar e participar de missões são algumas alternativas para vivenciar a espiritualidade

Gláucia Chaves
postado em 31/03/2013 08:00

No domingo de Páscoa, o exemplo de pessoas que conseguem renovar a fé por meio de experiências práticas. Meditar e participar de missões são algumas alternativas para vivenciar a espiritualidade

Ficar em paz com a própria espiritualidade é tarefa árdua. Tão difícil que está entre as preocupações dos seres humanos desde sempre. Algumas ocasiões, como a Páscoa, são propícias para fazer com que a reflexão acerca do que há além de nós venha à tona. Encontrar o elo entre corpo, mente e espírito, contudo, não precisa se resumir apenas a cultos e missas. Hoje, dia em que os cristãos comemoram a ressurreição de Jesus Cristo, a Revista mostra iniciativas de pessoas que resolveram colocar sua religiosidade em prática. Seja por meio da meditação, de viagens missionárias para países distantes, da manutenção de tradições familiares, seja pela escrita, todos que participaram da reportagem são unânimes: viver a própria religião também fora dos templos é essencial na busca pela renovação, sentimento que traduz a Páscoa.

O jardim da casa em que Maria da Glória Moura vive ainda conserva as árvores do cerrado, da época em que não havia quase nenhuma construção no Lago Sul. A professora de 76 anos fez questão de manter as plantas, além de acrescentar algumas mudas de jabuticaba. Para ela, estar em contato com a natureza é o melhor modo de se conectar espiritualmente a Deus. "Os pássaros cantando, o mar, as montanhas, tudo tem beleza. Não sei como alguém pode ver isso tudo e não acreditar em Deus." É no imenso espaço verde que ela pratica a chamada meditação cristã. Ela conta que a modalidade entrou na sua vida após um retiro espiritual, há 11 anos. "Quando eu estava prestes a completar 65 anos, fui ao Mosteiro de São Bento. Foi uma revelação."

Antes de experimentar a técnica idealizada pelo Padre John Main (veja quadro na página 25), Glória tentou a meditação budista. A diferença, segundo ela, é que a cristã é feita com base no evangelho. "Vi que fazia mais sentido para mim, que cresci em uma família católica." Quando medita, Glória diz que se sente mais perto de Deus, graças ao silêncio. A antiga tradição, para ela, é algo que merece ser resgatado. "A prática de ficar em silêncio está um pouco esquecida na Igreja", justifica. Ela se isola dos barulhos do mundo e medita pelo menos duas vezes ao dia. A primeira meditação é sempre na parte da manhã, uma vez que, assim, o dia "transcorre mais tranquilo".

Ainda que envolva concentração, a prática não é solitária. Glória recebe, uma vez por semana, interessados em "escutar a voz de Deus". As amigas Sônia Maria do Nascimento, Sônia Amorim, Lourdes Neiva, Maria da Graça Siqueira de Brito e Ana Araújo fazem parte do grupo. Antes de começar a sessão, todas leem uma parte do Evangelho, para servir de reflexão do dia. Para manter a mente longe das distrações do pensamento, a orientação é que cada um se foque na palavra "maranatha" ; termo em aramaico para "O Senhor vem", uma das mais antigas palavras-oração na tradição cristã. A espiritualidade, então, vai de dentro e desemboca para fora: segundo Glória, é uma maneira de abrir-se para o mundo. "Todas as religiões buscam isso, estar em contato com os outros para desenvolver a própria espiritualidade." A partir disso, vem a vontade de fazer a diferença. "Se você está disponível para o mundo, vai fazer o que o mundo precisa. Tem gente que faz caridade, ajuda idosos. O que não dá é meditar sem fazer nada, sem estar atento ao mundo ao nosso redor."

Geysa Mendonça é a coordenadora em Brasília da meditação cristã. Todos os sábados, às 16h, ela orienta um grupo de meditação no Santuário Nossa Senhora de Fátima, na 906 Sul. Ela conta que se apaixonou pela ideia após a visita de Dom Laurence Freeman, pupilo de John Main que deu continuidade aos ensinamentos após a morte do mestre. Em 2002, Freeman veio ao Brasil realizar um retiro espiritual e divulgar a técnica. Desde então, ela nunca mais parou. "A meditação é o que os antigos cristãos chamavam de oração do coração ou do silêncio. Nosso exercício é o silêncio interior mais profundo possível, para escutar o que Deus fala", resume.

Semanalmente, ela conta que Dom Laurence Freeman envia artigos para alguns coordenadores. Os escritos são publicados na página da Comunidade Mundial para Meditação Cristã e são usados como forma de orientação para as reuniões. "Ele fala sobre como meditavam os primeiros cristãos. Recebo e repasso para os membros do grupo", explica Geysa. Os textos servem também para tirar eventuais dúvidas entre os adeptos. Após a leitura, abre-se espaço para o debate sobre o que foi dito por Freeman. Meditar pode até parecer tarefa simples, mas ela frisa que nem todos conseguem lidar com os próprios pensamentos assim, tão facilmente. "No começo, é normal as pessoas apresentarem dificuldades em encontrar o silêncio interior", descreve. "Por isso, temos o nosso mantra, mas é complicado não deixar que as coisas do dia a dia interfiram."

A diferença entre a meditação cristã e outras técnicas, de acordo com Geysa, é que, para os cristãos, a meditação tem status de oração. "Era esse tipo de oração que predominava entre os primeiros cristãos", justifica. "Sabemos que o próprio Jesus meditava. Ele ia para o morro para estar com o Pai." Reservar alguns momentos do dia para se concentrar em si mesmo tem recompensas imediatas, segundo ela. Quem pratica não demora a perceber que a vida fica menos acelerada, por exemplo. "A paz interior também traz saúde", defende. "Muitos idosos relatam que estão menos estressados e que a pressão arterial melhorou, além das próprias conquistas espirituais."


No domingo de Páscoa, o exemplo de pessoas que conseguem renovar a fé por meio de experiências práticas. Meditar e participar de missões são algumas alternativas para vivenciar a espiritualidade
Esvaziar o ego e abrir-se para o silêncio, como fazem os que praticam a meditação cristã, é o melhor jeito de desenvolver a própria espiritualidade. A opinião é de Roberto Crema, reitor da Universidade Internacional da Paz (Unipaz), psicólogo, antropólogo e mestre em ciências humanas e sociais. "O espírito se expressa através de nós na justa medida em que somos capazes de pausa, de vazio fértil, para vivermos o agora, templo-espaço do encontro e da transformação, além da ilusão do passado e da ficção do futuro." Independentemente de crenças e dogmas, ele defende que, para se tornar realmente espiritualizado, é preciso ser capaz de amar e de servir.

Mas como colocar isso em prática? Treinar todos os dias, em eventos cotidianos. "O melhor exercício é o cotidiano. Ser herói em um palco não é difícil. Menos fácil é transparecer consciência, responsabilidade, respeito e cuidado no dia a dia, dirigindo, falando ao telefone, na fila de um banco", enumera. Ainda que não seja vinculada diretamente à Igreja Católica, ele explica que a Unipaz tem como objetivo desenvolver uma cultura de não violência a partir de uma educação integral. A abordagem usada é transdisciplinar holística, baseada no diálogo entre ciência, filosofia, arte e tradição espiritual. A proposta, transreligiosa, "respeita as tradições e as transcende, através dos valores fundamentais e perenes, comuns a todas elas."

Mas será que para vivenciar uma espiritualidade completa é necessário escolher uma religião? Segundo Roberto Crema, não. Ao mesmo tempo em que religião significa conectar-se consigo mesmo e com o outro, com a natureza e com a própria vida, em alguns casos, o fundamento principal, o amor ao próximo, pode fazer com que o foco principal vá para a instituição. "O poder corrompe e alguém já disse que o poder absoluto corrompe absolutamente. Uma pessoa pode ser religiosa e não espiritualizada", reforça. A inteligência espiritual ; conceito que diz que há um Quociente Espiritual, área do cérebro responsável por experiências espirituais e que aumentaria o horizonte das pessoas, tornando-as criativas e com vontade de encontrar significado para a vida ; seria uma prova disso. "O sagrado", explica Crema, "é uma experiência que não se limita ao campo religioso e pode ser também vivida e saboreada na ciência, na filosofia e na arte."


Leia a matéria na íntegra, na edição impressa da Revista do Correio

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