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Na mais absoluta normalidade

É isso que o chamado normcore prega: usar peças cotidianas, que não chamam a atenção nem passam a ideia de luxo. Será que a moda pega?

postado em 20/04/2014 08:00

É isso que o chamado normcore prega: usar peças cotidianas, que não chamam a atenção nem passam a ideia de luxo. Será que a moda pega?

Em não mais do que três anos, nós nos rendemos a tênis com salto alto, sandálias flatforms (plataformas retas, como uma rasteira de solado grosso), bolsas transparentes em formato de livros ou de frascos de perfumes, gente vestida de pijama em eventos de gala. ;Inventar moda; não tem um lugar cativo na linguagem popular brasileira por nada. O mercado fashion, de fato, sempre foi expert em lançar as mais questionáveis tendências. O público, em consumi-las sem questionar. As últimas semanas de moda internacionais, no entanto, trouxeram um cenário inverso. Dessa vez, a indústria parece estar pegando o caminho de volta e ;desinventando; moda. No lugar de peças elaboradas, tendências transgressoras, cenários futuristas, referências rebuscadas, o novo ícone fashion está mais para o seu pai ou o seu tio do que para Coco Chanel. Para usar uma figura universal: segundo esse ;movimento;, Steve Jobs ; fundador da Apple, morto em 2011 ;, de dentro de suas calças jeans e camisetas pretas lisas, seria o novo muso da moda.

É isso que o chamado normcore prega: usar peças cotidianas, que não chamam a atenção nem passam a ideia de luxo. Será que a moda pega?A referência maior dessa nova tendência ; ou ;não tendência; ; citada por blogs e revistas especializadas é o desfile da Chanel na temporada de verão em Paris: o cenário, um supermercado gigantesco montado dentro do Grand Palais, não poderia ser mais cotidiano e pé no chão. As modelos vestiam bolsas enroladas em embalagens de frios e tênis. Não fosse tudo Chanel, seria apenas a vida real e comum, escancarada a uma plateia de gente que adora sair do ;comum;. Tal atitude tem sido chamada de normcore por publicações especializadas e foi identificada muito antes das semanas de moda, em outubro do ano passado, pelo escritório de tendências nova-iorquino K-Hole. ;O normcore não quer a liberdade de se tornar alguém. Ele se afasta do conceito de cool que se baseia na diferença, para uma pós-autenticidade que opta pela mesmice;, define o relatório Youth Mode, assinado pelo escritório.

Em fevereiro passado, quando o assunto começou a ganhar espaço entre sites, blogs e revistas, a NY Mag publicou um artigo em seu site intitulado ;Normcore: moda para aqueles que sabem que são um em 7 bilhões;. ;A palavra tem sido usada em um sentido diferente, não para descrever um visual específico, mas para uma atitude mais geral: incorporar a mesmice deliberadamente como uma nova forma de ser cool, em vez de se esforçar pela ;diferença; ou pela ;autenticidade;;, tentou definir a publicação. ;Na moda, entretanto, isso se manifesta em roupas simplesmente ordinárias. De shopping. Lisas. O tipo ;pai; sem estilo algum que talvez um dia você tenha associado a Jerry Seinfeld;, continua o texto, citando o lendário humorista, estrela do seriado Seinfeld, sucesso nos anos 1990.

A década retrasada, aliás, é o ponto de partida dos entendidos quando eles tentam explicar de onde, afinal, pode ter saído essa onda ;sem sal;. ;Isso já ocorria naquela época;, enfatiza Otávio Lima, professor do curso de pós-graduação em negócios e varejo de moda da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. ;Na realidade, o que você tem é um processo de deixar a roupa mais confortável, descontraída. Naquela época, a gente tinha muito uma coisa de usar calça alfaiataria com tênis, por exemplo, para o look ficar menos formal, menos pensado. Mas foi preciso a Chanel e a Prada buscarem referências na rua para que isso fosse endossado, quando o que acontece é só uma adequação à realidade do consumidor contemporâneo;, analisa.

É isso que o chamado normcore prega: usar peças cotidianas, que não chamam a atenção nem passam a ideia de luxo. Será que a moda pega?Segundo Lima, as referências experimentais e de vanguarda usadas em desfiles de alta costura são importantes para a moda, mas afastam o público. ;Se você está vestindo uma cor ou uma forma, um volume muito diferente dos demais, você tem uma valorização da sua individualidade, e em uma época em que a gente precisa reinventar essa noção de pertencimento, de inclusão, o mundo pede uma moda mais facilitadora e menos complicada.;

Mit Shitara, professora do curso de moda da Faculdade Santa Marcelina, também vai aos anos 1990 para resgatar a ideia do high-low, movimento fashion que pregava a mistura de peças extremamente caras e luxuosas com camisetas velhas. ;Fingir-se de pobre ou de simples não é nada novo. Desde essa época, as pessoas ricas usam calças de grifes com tênis All Star;, diz. Para a professora, a Chanel foi esperta em captar um dado da realidade. ;Existe, nos Estados Unidos, um movimento grande de mulheres executivas deixando seus empregos para se dedicar à família. Elas são ricas, mas vão ao supermercado como qualquer outra. É a Chanel dizendo que fazer compras para a própria casa também é muito chique;, conclui.

Usar jeans e camiseta e ainda parecer a mais entendida entre os entendidos de moda parece convidativo, mas não poderia passar unânime por críticos e aficionados por moda. Katherine Bernard puxou a fila em um artigo publicado no site da Vogue americana. ;O normcore pode até ter sido uma boa renovada para o paladar, especialmente depois de um inverno sofrido, e pode até ter parecido especialmente encantador nos corpos de modelos tão lindas que o simples ato de usarem roupas não fabulosas as fizeram parecer ainda mais fabulosas. Mas a moda, ou o ato de vestir-se, deve ser divertido, e essa abordagem está se tornando um pouco chata;, escreveu a jornalista.

Voltar a usar cintas compressoras, silhuetas injustas de tão justas e passar noites em cima de saltos assassinos, no entanto, não parece ser a melhor opção, ela reconhece. ;Aprendemos que podemos ser confortáveis. Agora, temos a oportunidade de redefinir ;fabuloso;. O mundo precisa de tênis vestidos de pavões;, continua Bernard no artigo. Enfim, no momento, o mundo está rendido à normalidade. Resta saber se a moda brasileira embarca nessa.

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