As óperas de Londres, a princesa Diana andando com os pés descalços sobre o chão de sua casa, um fim de semana em Camp David com Bill Clinton, uma conversa com a família Houssein para libertar reféns brasileiros no Iraque durante a Guerra do Golfo. Experiências assim não são exatamente comuns na vida das pessoas. A não ser àquelas a quem o destino reservou uma existência incomum. Paulo Tarso Flecha de Lima é uma delas. Diplomata por 46 anos, acabou se tornando naturalmente um colecionador de dias e histórias absolutamente incríveis. Há 13 anos, a antiga rotina virou memória. E Brasília passou a ser sua nova rotina.
Desde então, está instalado num bonito e sóbrio escritório no Setor de Autarquias Sul, onde presta consultoria nas áreas de direito e de relações internacionais, sobretudo para investidores estrangeiros que pretendem instalar negócios na capital. Recebe também jovens diplomatas e outros profissionais em busca de conselhos e contatos. E isso ele tem de sobra. ;Dou com prazer. E dou de graça.; Dono de uma considerável e importante agenda de conhecidos poderosos, diz, no entanto, que hoje é de poucos amigos e de poucos eventos. Ama estar em casa e assistir a filmes de ação. ;O home(theater) é uma invenção diabólica;, brinca.
Nesta edição que antecede o aniversário da cidade, ele conta por que escolheu Brasília para viver. Fala sobre os anos no Itamaraty, política, saúde e sobre como é envelhecer.
Como Brasília entrou na sua vida?
Juscelino Kubitschek, antes de virar presidente, já era amigo da minha família. Meu pai foi tesoureiro da campanha dele em Minas Gerais, mas, naquela época, tesoureiro de campanha empenhava o próprio dinheiro; hoje, o sujeito fica rico com a campanha. JK era muito amigo nosso e me convidou para ir para o Rio. Eu tinha 22 anos e já era diplomata. Trabalhei no Palácio do Catete quatro anos e meio. Quando Brasília foi inaugurada, eu era oficial de gabinete do JK. Acompanhei todo o processo, então minha relação com Brasília sempre foi muito próxima. Quando a capital se mudou para cá, era natural que eu viesse junto. Naquela época, era um poeirão que você não faz ideia. O berço da minha filha Isabel ficou inutilizado durante a mudança. Aquela poeira se emprenhou no berço e nunca mais ele foi usado. Mas fiquei só duas semanas.
Por que tão pouco tempo?
Eu era adjunto do embaixador Sette Câmara, que foi nomeado governador do novo estado da Guanabara e ele me chamou para ser chefe de gabinete da Casa Civil, então tive de voltar para o Rio. Fui convidado porque tinha uma memória prodigiosa, invejável, impressionante mesmo, não precisava de computador nem de arquivo. Sabia de cor todas as demandas de deputados e políticos. Depois, fui para Roma ; curioso: foi meu primeiro e último posto.
O senhor serviu nos postos mais cobiçados. Poderia ter escolhido qualquer cidade para viver depois da aposentadoria. Por que escolheu Brasília?
Já tinha comprado casa aqui. Sempre me dei bem em Brasília, a cidade é agradável e o povo é acolhedor. A luz de Brasília é uma coisa fantástica. Minha família vive muito bem aqui.
O senhor teve um Acidente Vascular Cerebral. Como foi sua recuperação?
Estava em Nova York, tinha 62 anos. Foi como um raio em um dia de céu claro. Não tinha nada e, de repente, caí semiparalisado. Estava me preparando para passar o fim de semana na casa de Katherine Graham, dona do The Washington Post. No chão, eu percebi que era um derrame. Meu rosto estava contraído e os movimentos, paralisados. Eu morava perto do hospital Georgetown. Em duas horas e meia, estava sendo operado do cérebro. A rapidez foi fundamental. Fui abençoado. Não tive sequelas maiores que essa dificuldade de movimento. Tenho memória, minha fala foi preservada. Lutei muito para não deixar que a doença me afetasse. A chave do sucesso é lutar, não aceitar passivamente a adversidade. Temos de estar aptos a enfrentar a dificuldade.
A sua forma de encarar a vida mudou?
As prioridades mudam. Você passa a entender mais as dificuldades da natureza humana, do próximo. Antes de passar por coisas assim, todos somos autocentrados. Fiquei mais religioso. Eu me convenci de que minha recuperação se deveu às minhas orações para Nossa Senhora.
Essa devoção foi o que o ajudou quando seu filho morreu?
Foi o maior golpe que já tive. Não desejo isso para o meu pior inimigo. Meu filho estava com obesidade mórbida, fez a cirurgia de redução de estômago, mas no pós-operatório teve síndrome da angústia respiratória do adulto, nem sabia que isso existia. O processo foi se agravando e ele acabou falecendo. Eu sou muito bem-casado, a minha mulher (Lúcia Flecha de Lima) é uma companheira sempre presente e muito forte e isso foi um fator importante para seguir adiante.
O senhor serviu 46 anos no Itamaraty. Conviveu com reis, rainhas, presidentes, ministros. Como define o poder?
É a capacidade de transformar a vida das pessoas. E isso bem usado beneficia muito o país. Tem de retribuir o apoio que recebe.
Os nossos políticos o usam bem?
Há momentos em que ficamos céticos, mas a vida política brasileira é saudável. Somos um país gigantesco com problemas gigantescos, temos de entender as limitações que o poder confere. Ele não é absoluto.
Antes de o ex- presidente Lula ser eleito, o senhor já afirmava que ele faria sucesso nos EUA. De onde vinha a certeza?
O ex-presidente Lula tem um encanto, um carisma que imediatamente conquista as pessoas. Nunca votei nele, mas tenho grande admiração.
O senhor conviveu com a família real britânica;
A princesa Diana era uma amiga muito querida, ia fim de semana lá para casa. A primeira coisa que ela fazia era tirar o sapato porque queria ficar à vontade. Era uma pessoa extraordinariamente agradável e muito bonita. Era um prazer o convívio com ela. Era engraçada e tinha senso de humor.
De que episódios da sua carreira o senhor se lembra mais? Teve uma participação importante na libertação dos brasileiros no Iraque, na Guerra do Golfo.
O episódio do Iraque foi feito para me queimar. Estragaram as minhas férias no sul da França, mas em compensação consegui trazer os 500 brasileiros. O Itamar (Franco) estava interino. Alguém do SNI o convenceu de que era melhor trazer os que tinham condições de visto antecipadamente. Foi a primeira vez que pratiquei uma desobediência. Eu me recusei. A área diplomática de que mais gosto é a negociação; gosto de persuadir o meu adversário, por isso fui designado para aquela tarefa. Conversando com Saddam (Houssein), ele me explicou: ;Olha, embaixador, a relação do Iraque com o Brasil é interessante porque vocês têm condições de oferecer a mesma cooperação econômica que países industrializados, mas não cobram o preço político;.
O senhor conviveu com muitos presidentes do Brasil. Algum especialmente lhe impressionou?
Um dos mais interessantes foi o general (Ernesto) Geisel. Era de difícil convívio, mas era muito afirmativo, dogmático.
Acabamos de lembrar os 50 anos do golpe militar. Como foi sua permanência no Itamaraty durante a ditadura?
Eu fiquei no Itamaraty porque não era empregado do governo, e, sim, de Estado, concursado. Tinha legitimidade para estar lá, acima de qualquer circunstância política.
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