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A droga da discordância

Ainda há muito a se pesquisar sobre a natureza do TDAH, se genética ou ambiental. A medicalização do tratamento, porém, segue num ritmo que supera o número de diagnósticos. No centro do debate, está a substância chamada metilfenidato

postado em 01/06/2014 08:00

Ainda há muito a se pesquisar sobre a natureza do TDAH, se genética ou ambiental. A medicalização do tratamento, porém, segue num ritmo que supera o número de diagnósticos. No centro do debate, está a substância chamada metilfenidatoOs números são pouco exatos, mas estima-se que entre 2% e 6% das crianças no mundo tenham TDAH ou, no seu nome completo, transtorno do deficit de atenção e hiperatividade, uma síndrome que inclui sintomas como inquietação, baixo rendimento escolar, dificuldade de concentração e impulsividade. Não raro, são meninos e meninas com notas baixas, comportamento problemático, e que despertam a impaciência de pais, colegas e professores devido à agitação, além de frequentemente serem alvo dos mais cruéis tipos de bullying.

O transtorno não tem unanimidade, embora a grande maioria da comunidade médica não conteste sua existência. Esses profissionais se baseiam em uma série de estudos científicos que identificam os sintomas como resultado de um desequilíbrio químico cerebral, tal qual a depressão ou outras doenças psiquiátricas. Os críticos, por sua vez, alegam que o comportamento problemático por si só não pode constituir um quadro clínico.

A discórdia alcança ainda o principal remédio empregado no tratamento, o metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial de Ritalina. Por um lado, o medicamento representa alívio tanto para pessoas com o transtorno quanto para pais e professores. Por outro, é o centro de um debate que inclui impasses éticos, prescrição indiscriminada, uso banalizado (para turbinar os estudos) e até comparações com substâncias ilícitas, como a cocaína.

O metilfenidato arrasta fãs na mesma proporção em que acumula críticos. Não é de hoje que os números divulgados a respeito do consumo da medicação, um estimulante do sistema nervoso central da família das anfetaminas, assustam. Em 2004, noticiava-se a alarmante previsão de que, naquele ano, seria vendido mais de 1 milhão de caixas do medicamento. Sete anos depois, em 2011, o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos alertava que, desde 2000, as vendas no país haviam aumentado nada menos do que 3.200%. No ano seguinte, foi a vez de a Secretaria de Saúde de São Paulo divulgar que o Brasil já ocupava o segundo lugar no ranking dos maiores consumidores de metilfenidato do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Se em 2004 o primeiro milhão de caixas do medicamento causava espanto, o que não devem estar pensando os seus críticos com os dados mais recentes: de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2013, esse número bateu os 2,6 milhões, mais que o dobro da previsão de oito anos atrás. Esses são dados fornecidos pelas farmácias à agência reguladora. Mas, como a maioria dos medicamentos de uso controlado, o metilfenidato também caiu no mercado ilegal. A venda de Ritalina off label (sem receita) corre fácil pela internet. Um site anuncia sua venda "sem receita e 100% seguro" a R$ 79 a caixa com 20 comprimidos de 10mg. Em uma farmácia regular, com apresentação da receita, ela sai por cerca de R$ 20. Quem compra, em geral, são trabalhadores que querem ficar acordados durante longas jornadas ou render mais em seus expedientes, estudantes preocupados com seus rendimentos no vestibular e na faculdade e concurseiros em busca de foco e ânimo nos estudos ; todos sem diagnóstico de TDAH. Não à toa, a Ritalina leva apelidos como "droga da inteligência" e "droga dos concurseiros".

Talvez isso ajude a explicar outro dado que coloca Brasília, capital dos concursos públicos, no foco da discussão sobre a venda de metilfenidato no país: segundo o último boletim de farmacoepidemiologia da Anvisa, o DF é a unidade da Federação que mais consumiu o medicamento entre 2009 e 2011. No primeiro ano, o número de comprimidos dispensados a cada mil crianças foi de 59,42. Em 2011, foram 114,59. No Rio Grande do Sul, segundo lugar do ranking, esses números foram de 56,21 e 99,26, respectivamente. Em São Paulo, apenas 11,16 e 36,43.

Não é só na internet que o mercado clandestino da Ritalina avança. Dentro das salas de aula dos cursinhos ou mesmo entre alunos, o acesso é facilitado. Em Brasília, um profissional requisitado na preparação para concursos garante que existem professores que, ao perceberem alunos dispersos nas aulas, distribuem aos desatenciosos uma relação das farmácias da cidade onde se pode comprar o medicamento sem receita médica.

Em favor do tratamento precoce
Ainda há muito a se pesquisar sobre a natureza do TDAH, se genética ou ambiental. A medicalização do tratamento, porém, segue num ritmo que supera o número de diagnósticos. No centro do debate, está a substância chamada metilfenidatoA estudante universitária Júlia Cristina, 23 anos, foi diagnosticada na infância. Tinha 8 anos. Mas, na época, assustados com o laudo e paralisados com a ideia de ministrar medicações tarja-preta para a menina, os pais de Júlia, segundo ela, decidiram apenas fechar os olhos e fingir que o diagnóstico não existia. Sem tratamento, Júlia levou a escola aos tropeços ; algo bastante comum entre pessoas com TDAH. "Eu passava, mas tinha que estudar mais do que todo mundo. Sempre ficava de recuperação no fim do ano. Os médicos falavam que eu nunca sairia do ensino médio. As pessoas sempre me olhavam de cima para baixo. Ainda hoje me sinto burra. Todos os dias", desabafa.

Superada a escola, Júlia entrou em um cursinho para tentar o vestibular. Passou para química tecnológica na UnB depois de um ano e meio de estudo. Na faculdade, viu que não conseguiria levar o curso à base de reforço escolar. "Vi que o buraco era mais embaixo. Eu me sentia mal e desmotivada. Chorava todos os dias, fiquei doente. Até que cheguei ao ponto de trancar a matrícula", conta. Vendo o sofrimento da filha, o pai a levou a um psiquiatra. Desta vez, ignorar o diagnóstico nem sequer era uma opção. O tratamento começou há seis meses. Júlia retomou os estudos no início do semestre. "Minha mãe ficou chocada, mas sabe que minha vida acadêmica precisa disso. Eu mesma tinha preconceito com a medicação. Quando comecei a tomar, minhas notas foram lá em cima. Pensei que não precisava daquilo e parei por conta. Mas meu rendimento voltou a cair." Hoje, ela se diz 50% melhor. "O remédio ajuda, mas não faz tudo sozinho. Eu ainda estou aprendendo", conta.

Mas, ao contrário do que muitos acreditam, nem todos os pacientes com TDAH ficarão dependentes da medicação para o resto da vida. Em cerca de 50% dos casos, os sintomas regridem da infância para a adolescência ou para a vida adulta. "Esse quadro é explicado pela neuroplasticidade, a capacidade que o cérebro tem de modificar as suas funções caso seja estimulado adequadamente. A medicação influencia na plasticidade. Estudos recentes têm demonstrado que o metilfenidato pode induzir a produção de um neurotransmissor chamado BDNF, responsável pelo crescimento neuronal", explica o pediatra Carlos Nogueira Aucélio, da UnB. Foi o que aconteceu com Thiago, de 16 anos.

O adolescente tomou a medicação por apenas um ano e meio. Ele tinha 11 anos quando recebeu o diagnóstico. Ao contrário do que é comum acontecer, a suspeita não veio da escola. Foi a mãe, a fonoaudióloga Zenilda Almeida, acostumada a encontrar crianças com problemas de aprendizagem na prática profissional, quem desconfiou do transtorno. "O laudo depende de uma série de profissionais. Mesmo o psicólogo também auxilia a identificar o problema. O diagnóstico diferencial é muito importante. Nossas crianças não brincam mais, não correm, passam horas em frente ao computador, não escolhem mais suas brincadeiras. Só um bom profissional vai separar o TDAH de tudo isso", afirma.

O caçula, de 9 anos, também recebeu o diagnóstico, aos 8. Ao contrário do irmão, os traços de hiperatividade nele eram bem mais evidentes ; algumas crianças têm a desatenção mais latente, outras têm a impulsividade e outras, a inquietação. "Ele andou com oito meses. Aliás, andou não, correu. Com 3 anos, já derrubava os quadros lá de casa", lembra a mãe. Os dois entraram no metilfenidato. Thiago recebeu alta do tratamento e, agora, faz apenas acompanhamento com o médico duas vezes por ano. O mais novo ainda está aprendendo a lidar com os sintomas. Senta-se na frente na escola, tira boas notas e não recebe nenhum tratamento diferenciado. "Eu pedi para que ele fizesse prova com todos os alunos e para que observássemos. Por enquanto, ele está se dando bem", comemora a fonoaudióloga.


Leia a reportagem completa na edição n; 472 da Revista do Correio.

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