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A reinventora da silhueta

Em mais um perfil da série sobre as mulheres que inovaram o mundo da moda, apresentamos Rei Kawakubo, a estilista japonesa que fez tudo diferente e, até hoje, se mantém na vanguarda

postado em 27/07/2014 08:00
Em mais um perfil da série sobre as mulheres que inovaram o mundo da moda, apresentamos Rei Kawakubo, a estilista japonesa que fez tudo diferente e, até hoje, se mantém na vanguardaA estilista japonesa Rei Kawakubo, fundadora da Comme des Garçons, vez ou outra se justifica em entrevistas, dizendo que nunca teve a intenção de desafiar padrões, iniciar uma revolução na moda ou mesmo quebrar regras. Foi o que ela fez. Desde o início da década de 1980, quando caiu nas graças das passarelas ocidentais, Kawakubo desconcerta pelos cortes assimétricos, pelas sobreposições de camadas e texturas, pela postura completamente antifashion.

O trabalho da designer está inserido no contexto da ascensão de outros gênios orientais da moda, como Issey Miyake e o próprio Kenzo. "A Rei Kawakubo tem um trabalho incrível, mas é preciso olhar para ela no contexto da história dos japoneses na semana de moda francesa", observa Ivan Bismara, coordenador do curso de design de moda da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. Desde 1975, ela mantinha, em Tóquio, uma boutique para "mulheres que não são levadas pelo que o marido pensa", mas o primeiro desfile em Paris ocorreu somente em 1981 ; e não foi exatamente um sucesso de crítica.

"Seus desfiles não aconteciam no line-up principal do evento, mas sim em passarelas menores, paralelas. Eles eram os outsiders", continua Bismara. Na estreia na capital francesa, as formas, as cores, as silhuetas causaram ; como ainda fazem hoje ; um certo desconforto na primeira fila. "Sua moda sempre foi autoral, ela sempre desafiou o padrão estabelecido. Deslocava a silhueta feminina, abusava de drapejados volumosos e os colocava em locais pouco convencionais. Tanto que seu primeiro desfile causou espantos e críticas. Para alguns críticos, aquilo pareceu mais um cortejo fúnebre ou um monte de mendigos passeando", recorda-se Mit Shitara, professora do curso de moda da Faculdade Santa Marcelina.

Os mendigos aos quais a especialista se refere se tornariam depois símbolo da moda japonesa em terras ocidentais. Era o "pauperismo", o estilo "pobre", com tecidos furados, esburacados, rasgados, peças inacabadas ou sobreposições e formas superamplas. Para Ivan Bismara, a discussão vai além do visual pobre, ou do hi-lo ; o casamento do alto luxo com peças baratas que muitos creditam a Kawakubo como precursora.

"Fala-se em pauperismo, mas não é bem assim. Esse conceito japonês tem um contexto histórico. Vem desde a Segunda Guerra", argumenta Bismara. "Você já viu como as pessoas ficaram depois da bomba (de Hiroshima e Nagasaki)? Essa é a grande inspiração dos estilistas japoneses da geração da Rei. É uma crítica sutil àquela coisa do brilho, do rebuscamento, do alto luxo da moda francesa", diz o professor da FAAP.

Mesmo traçando sua moda tão fora do convencional, a designer japonesa conseguiu puxar uma fila de seguidores, atentos a suas criações aparentemente inutilizáveis fora das passarelas. Veja o caso da calça clochard (mendigo, em francês) ; é um dos legados de Kawakubo. "A coleção que ela coloca na passarela não vende. Aquilo não é moda para usar. Mas as ideias dela viram tendência nas mãos de outros estilistas. A calça clochard é um exemplo típico. Os mendigos usam as calças assim, muito maiores do que o seu tamanho, com a cintura deslocada e amarradas da forma que dá porque eles não têm outra coisa para usar. Essa cintura fora do lugar é característica do trabalho dela", observa Mit Shitara, da Santa Marcelina. "É uma roupa que não foi feita para vestir, mas para esculpir uma nova silhueta", continua.

Reclusa e geralmente avessa a aparições na mídia, Rei Kawakubo geralmente só é vista em entrevistas negando sua aversão aos padrões vigentes ou justificando suas criações pouco convencionais. Não gosta de explicar de onde vêm suas ideias porque, ela diz, o processo criativo não é mais importante do que apenas ver e sentir suas roupas, da maneira como são mostradas na passarela. "Eu não estou interessada em regras, ou se elas estão nas minhas roupas ou não. Eu não as quebro propositalmente. Eu apenas crio roupas que eu mesma sinto que são bonitas. As pessoas é que talvez achem que esse jeito de sentir e pensar seja contra as regras", disse em entrevista ao site especializado Style.com.

Mais de duas décadas depois de ter empurrado, com louvor, quase goela abaixo seu shape e suas concepções desafiadoras, Kawakubo segue, na visão dos especialistas, com o trunfo de ter se mantido independente e conceitual. Sua moda ainda é para poucos. "Ainda hoje você reconhece suas roupas de longe. Ela manteve sua identidade forte, sua assinatura", avalia a professora de moda Mit Shitara. "A indústria da moda tende a tirar ou a distorcer a liberdade de criação. Eu acho que o mundo da moda nunca foi um lugar confortável para se estar. Digo, em termos de ter de lutar para ser livre para se fazer o que quer", disse a estilista, na mesma entrevista ao site norte-americano.

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