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Da porta pra dentro

As formas de morar do brasiliense incluem apreço pelo verde, gosto pela luminosidade natural e um desejo de homenagear as raízes nos objetos de decoração

Juliana Contaifer
postado em 17/01/2016 08:00

As formas de morar do brasiliense incluem apreço pelo verde, gosto pela luminosidade natural e um desejo de homenagear as raízes nos objetos de decoração

Quando Brasília foi construída, nasceu também uma forma nova de morar. A ideia de Lucio Costa era que só os monumentos cívicos ficassem expostos aos visitantes. A privacidade dos moradores seria protegida por cinturões de árvores; a infância seria debaixo dos blocos; os moradores não precisariam ir longe para conseguir boas escolas, comércio farto, templos religiosos. Os prédios, semelhantes a caixinhas de fósforo com janelas enormes, abrigariam todos os brasilienses ; ricos e pobres. De fato, espaço e a comodidade eram aspectos marcantes da capital nascente.

A realidade, porém, é que a cidade utópica cresceu. O modernismo, lindo, criou 62.945 apartamentos minimalistas e crus, sem nenhuma referência de Brasil. Só que o Plano Piloto é parte de um quadro maior: criamos, aqui, um jeito próprio de morar. Enchemos os cômodos de referências aos nossos estados de origem. Ao mesmo tempo, aprendemos a valorizar as características singulares de Brasília.

;A arquitetura aqui foi influenciada por outras cidades, outras tradições, outras culturas. Não é só modernismo. Temos muita inspiração nas casas do interior de Minas Gerais, com telha colonial, por exemplo. Somos uma mistura de tudo. Brasília é uma cidade eclética;, argumenta Angela Borsoi, diretora regional da Associação Brasileira de Designers de Interiores/DF. E há muito orgulho nas casas brasilienses, tanto é que é costume visitar as pessoas. Se não para um lanche da tarde, para os muitos almoços, jantares e festas que ocorrem no recesso do lar.

Nesta edição, entramos nas casas de alguns brasilienses para saber como é a vida entre quatro paredes.

Moradias brasileiras

O brasileiro não ;habita; sempre da mesma forma. No Nordeste, mais quente, as casas são arejadas e as redes, um artigo fundamental. As regiões mais frias têm projetos completamente diferentes. Ambas as formas têm raízes em comum, que remontam à chegada da família real ao país.

;Com a industrialização, a partir do século 18, a Europa viveu o surgimento de novas classes urbanas que seguiam modelos suntuosos, muito refletidos no jeito de morar;, conta Renata Amaral, presidente da Associação Brasileira de Designers de Interiores. ;A partir do século 19, a classe média decorava as moradias com artigos produzidos em massa, como papéis de parede e tecidos, mas, nas salas de estar, priorizavam o que aparentava riqueza, conforto e formalidade.; Com os europeus e seu gosto por uma decoração ostensiva, veio também uma mão de obra especializada, que ainda não existia nas terras tupiniquins. A boa madeira, abundante, encontrou forma e sofisticação.

Com o tempo, o brasileiro foi adaptando as novidades que chegavam da França e da Inglaterra ao clima e ao gosto da época. Os paquebots, na década de 1920, eram glamourosos navios que, muito bem decorados, chegavam mostrando as modas da Europa. ;Eles exerceram um papel fundamental na formação do gosto, na tomada de consciência quanto ao mobiliário, à ambientação de qualidade e ao valor de um bom design. Já nos anos 1940, com a Segunda Guerra Mundial, chega ao Brasil uma nova leva de decoradores, que contribuíram para que o design e a decoração florescessem por aqui;, explica Renata.

Nas décadas seguintes, surgem profissionais que são referência até hoje, como Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e Jorge Zalszupin. Com a inauguração de Brasília e todos os ideais modernistas que envolvem a construção da nova capital, vieram peças e ideias que traduziam o que havia de melhor no design nacional e internacional. ;Todos estavam presentes em mais essa etapa da construção de uma identidade nacional, que vinha sendo forjada com mais força desde os anos 1950. E chega à década seguinte fortalecida, mas com o frescor do que é jovem e vigoroso;, afirma a presidente da ABD. Os anos 1960 também inauguraram uma nova forma de pensar a decoração.

A conclusão é que não há apenas um jeito de morar no Brasil. Todas as influências que recebemos desde a chegada dos europeus construíram o que temos hoje. ;Essa mistura é a verdadeira riqueza da nossa decoração e é uma delícia enxergar através do tempo e ver como as pessoas passaram a valorizar cada vez mais o lar;, afirma Renata. O que une todas as regiões é mais um desejo pela privacidade. Jerry Sanchez, diretor de vendas de prédios de luxo em Miami (cuja população brasileira está em franca expansão), arrisca um perfil: brasileiros procuram imóveis amplos e em vizinhanças tranquilas.

Preferências locais

;As pessoas estão investindo em morar bem, curtindo a decoração com coisas mais divertidas, mais atuais. Agora se tem mais acesso ao mobiliário de design, e há um desejo por renovar, tornar a casa mais atual;, explica a designer de interiores Angela Borsoi. Outra necessidade do brasiliense é unir praticidade e conforto. A casa não deve ser complicada de limpar ou cheia de objetos frágeis, mas uma decoração charmosa e sofisticada é bem-vinda. ;Ninguém tem mais tempo ou mão de obra para passar enormes toalhas de linho, por exemplo;, afirma Angela. Os revestimentos entram com sucesso, imitando materiais, como pedra e madeira, com perfeição e, de quebra, têm uma manutenção muito fácil. ;Há uma tendência de facilitar a vida cada vez mais.;

;Tenho percebido que o brasiliense tem se voltado para um lado mais moderno. Absorver os conceitos de minimalismo e modernismo é um processo que demora, mas acho que estamos chegando lá;, explica a arquiteta Cynthia Rondelli. Não se tem mais aquele monte de móvel. É um sofá bom, uma poltrona de design. A iluminação é importante, porque valoriza peças de arte, principalmente de artistas locais. ;Hoje se usa mais a casa, o brasiliense gosta de estar em casa;, avalia Angela.

Como é uma das cidades mais arborizadas do país, o morador de Brasília faz questão de estar cercado de verde. Quer ter uma vista, um jardim imenso, olhar pela janela e ver as árvores, flores e frutas. Esse engajamento com a natureza no dia a dia se traduz também no jeito de viver. Há uma preocupação com preservar a natureza, aproveitar a luz natural, a ventilação, a energia que vem do sol, reaproveitar a água da chuva. ;O brasiliense procura mais jardins, trazer o verde para casa, mas não necessariamente dentro de casa. Vemos aberturas para área externa, esquadrias cada vez maiores, panos de vidro, tudo para ter um contato direto com a natureza;, explica a arquiteta.

Segundo ela, a febre dos pergolatos e das paredes verdes são bom exemplo das novas prioridades brasilienses. O primeiro traz plantas em madeira enquanto protege da chuva ; e não é usado só em jardins; as coberturas têm aderido ao pergolato. As paredes verdes também se tornaram uma forma de levar a natureza para dentro de casa.

Vivendo o modernismo

;Eu queria uma vida mais prática.; É o que conta Deise Lima, 44 anos. A empresária morou a maior parte da vida em casas. Há dois anos, decidiu mudar de vida e comprou um apartamento na 114 Sul. ;Estava em um processo de reduzir, de diminuir minha vida. O fim da Asa Sul é um lugar superarborizado, que combina com a minha vontade de fazer as coisas a pé. É muito prazeroso andar por aqui;, explica.

O apartamento de Deise traduz bem essa vontade de ter a natureza por perto. Tem grandes janelas e cobogós que passam pelo apartamento inteiro. Até no banheiro. A cozinha americana funciona dando ainda mais fluidez ao projeto, que já estava pronto quando a empresária comprou o imóvel. A localização também é importante ; Deise espera conseguir ir ao trabalho de bicicleta.

;Fiz poucas intervenções, achei que ele combinava muito com as minhas coisas. É grande, então meu mobiliário feito para espaços maiores, coube. Quanto à decoração, ela basicamente conta a minha história de vida. Tenho aqui, misturados, objetos da minha mãe, os meus, os de arte, de viagens, de amigos e dos meus filhos;, resume.

A vida no apartamento também é um retorno. Deise nasceu no prédio vizinho. Hoje, mora com o filho caçula e aproveita a concepção da casa para receber amigos. Ainda menos do que gostaria, mas sempre recebe visitas. Além disso, inspirada por toda a luz, ventilação e natureza que cercam o apartamento, a última empreitada da empresária é tentar diminuir a quantidade de lixo que produz.

Que seja colorida!

Dizem que, se a casa é colorida, os moradores são felizes. Então quem anda pelas apertadas ruas da Cidade Estrutural e encontra o muro verde da casa da diarista Maria Elizabete Brito, 50 anos, tem certeza que, como diz a placa, ali mora uma família feliz. Por dentro do portão, encontra-se uma casa pequena, mas arrumadíssima, e um grande jardim, que recebe gente todos os fins de semana. Para chegar na cozinha, é preciso passar pelo quarto de casal, mas a parede laranja da sala, a capa azul-royal do sofá e o laranja da manta provam que ali não falta capricho ; e bom humor.

;Se eu pudesse, ficaria a vida toda arrumando minha casa. Passo meus dias organizando a casa dos outros e adoro fazer o mesmo com aqui. Até no dia que eu tô de folga, arrumo alguma coisa para fazer. E eu gosto de tudo colorido, estampado, alegre! Todo mundo que chega aqui comenta como é linda a minha casinha;, revela a diarista. Maria Elizabete mora com o marido e o pai na Estrutural há 17 anos. Os filhos, já casados, não moram lá, mas fazem questão de fazer uma visita semanal. Os moradores são só elogios à região. ;Eu adoro a Estrutural, é muito bom morar aqui. Tem gente que diz que é violento, mas, à meia-noite, qualquer lugar é violento. Para mim, é tranquilo, não tenho do que reclamar.;

A grande atração da casa é mesmo a área externa. A maioria das casas da região aproveita quase todo o terreno para edificação, mas não o imóvel da diarista. O jardim tem uma pequena horta, um sofá, uma mesa e bastante espaço para receber as quase 30 pessoas que frequentam a casa do muro verde. ;A ideia é subir mais um andar, mas sem mexer no jardim. Sou de família cearense e adoro receber. Por enquanto, é pequena? É. É simples? É. Mas eu estou morando no que é meu, e sou muito feliz com a minha casinha;, afirma.

Leia a reportagem completa na edição n; 557 da Revista do Correio.

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