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Cachorro olhando para baixo

Gustavo Falleiros
postado em 26/03/2016 16:38

Duas vezes por semana, acordamos com as galinhas. Eu e minha esposa. Na hora e meia seguinte, travamos um diálogo com o corpo. Na verdade, parece mais uma briga. É um tal de contrair as patelas, ajeitar os ísquios e alinhar os ombros... É ioga. Não sei nada de ioga. Felizmente, os pacientes professores (Rafael, Giselle e Sumaya) ignoram essa ignorância e estendem uma rede de proteção sobre a qual depositamos o nosso melhor adhomukha svanasana (a postura do cachorro olhando para baixo).

Depois, vem um bem-estar duradouro. Esses iogues sabem das coisas. No caso, os preceitos são do Iyengar (1918-2014), mestre indiano que nasceu com sérias limitações físicas e as superou aos poucos, com muito trabalho interior e exterior. Ele acreditava que nada, além da teimosia da mente, nos impede de praticar. E, com simplicidade, introduziu uma série de acessórios que ajudam muito nos movimentos: tijolinhos de madeira, mantas, cadeiras etc. É fácil, mas é difícil.

Estava pensando nessa dualidade quando me lembrei de Hermógenes, um dos pioneiros da ioga no Brasil, falecido no ano passado. O professor completaria 95 anos agora, em 9 de março. Também foi um exemplo de superação e singeleza. Ainda rapaz, quando era capitão no Exército, adquiriu uma tuberculose braba, que lhe comprometeu os pulmões e a laringe. Passou pelo famigerado pneumotórax e, em um dado momento, foi considerado "curado". Na verdade, estava péssimo: o tratamento o adoeceu de outras formas.

"Eu pratiquei ioga escondido dentro do banheiro. Eu pratiquei hatha ioga. E foi o bastante para fazer uma transformação em mim que me favoreceu a cura", disse ele, já bem idoso. Esse depoimento faz parte de um documentário bem bacana lançado recentemente, Hermógenes, poeta e professor do Yoga. Entre outras coisas, o filme enfatiza o esforço do professor em passar as ideias sem complicação. "Eu vi que a ioga pode ajudar o ser humano em seus sofrimentos. O ser humano não avalia o quanto ele pode ser mais feliz. Sacou?"

Mais claro, impossível. Enquanto você tenta encostar a testa no chão, respirar com consciência ou se sentar apoiado nos calcanhares, alguma coisa acontece. O quê? Sei lá. Não precisa pensar em coisa alguma. Vai ver, um dia, a mente assimila o que o corpo já entendeu há muito tempo. Deve ser assim. Não sei nada de ioga, mas esses iogues sabem das coisas.

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