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A vida sem bater ponto é a realidade de muitos brasileiros

Cada vez mais pessoas deixam os empregos formais para investirem no sonho e na liberdade do empreendedorismo

Renata Rusky
Ricardo Faria - Especial para o Correio
postado em 10/12/2017 08:00 / atualizado em 14/10/2020 11:33
Estudar, fazer faculdade, arrumar um bom emprego, casar, ter filhos. A partir de então, trabalhar para chegar ao topo da carreira e, finalmente, se aposentar. Ufa! Que vida!

Esse era o sonho (e a trajetória) de grande parte dos brasilienses com mais de 50 anos — e o destino que muitos deles queriam para seus filhos e netos.

Mas essa configuração tem mudado. Aposentar-se está mais difícil e nem todos traçam como meta casar, ter filhos e até mesmo alcançar a tão valorizada estabilidade. A vida batendo crachá não satisfaz tanto ou, simplesmente, deixou de ser a principal opção.

Para a psicóloga e consultora organizacional Alessandra Fonseca, os jovens são levados a escolher uma profissão ainda muito cedo e a vontade de seguir novos rumos pode surgir em outras fases de suas vidas. Jogar tudo para o alto e apostar na aventura.

Além disso, muitos fatores podem levar as pessoas a mudanças. “Às vezes, é um sonho inicial que não foi perseguido por causa da expectativa de outros ou por necessidade”, avalia.

“Mas, em muitos casos, são profissionais que se incomodam com a falta de autonomia nas empresas, liderados por pessoas que não conseguem motivar os funcionários, que reagem à mesmice”, destaca Alessandra.

É claro que a crise econômica do país, entre os motivos, leva as pessoas a procurar coisas diferentes para fazer. Além de ter desempregado muita gente, a crise colocou ainda mais pressão em quem permaneceu em seus respectivos trabalhos.

Junta-se a isso o fato de que o brasileiro foi definido como pessoas que têm um desejo nato de empreender pela The Global Entrepreneurship Monitor de 2015.

Segundo levantamento da instituição, quatro em cada 10 brasileiros têm um negócio. A taxa de empreendedorismo aqui é superior à dos Estados Unidos, México, Alemanha, Índia e China.

Na capital, a situação é animadora para quem gostaria de ter seu próprio negócio. Apesar de o DF ser o décimo-sexto no ranking das 32 cidades analisadas pelo estudo Índice das Cidades Empreendedoras 2016, a capital tem o terceiro maior mercado para quem quer empreender. Um bom começo!

Aos poucos, o brasiliense se aproveita disso e busca alternativas para desenvolver o que quer da vida.

Carreira renegada e conquistada

Foi mais ou menos o que aconteceu com Letícia Castro, 38, publicitária, musicista e empresária. Como o script mandava, ela fez faculdade e conseguiu um emprego em uma importante agência de mídia digital. Mas não estava feliz.

“Eu queria ter meus próprios projetos”, relembra. Foi quando um amigo que filmava casamentos a alertou sobre como o mercado de casamentos estava mudando e crescendo. “Estava tudo menos padronizado, mais intimista. Menos a música”, conta ela sobre o insight que teve.

Na época, os músicos de casamento, segundo ela, eram pessoas que não deram muito certo e aquele nicho era o que restara. Resolveu, então, abrir sua própria empresa e trabalhar com o que mais gosta de fazer: música.

A carreira anterior agregou muito ao novo projeto, ela usa, em seu novo negócio, todas as estratégias de marketing que estudou na faculdade e colocou em prática em anos de trabalho.

Para Letícia, a música em um casamento tem que combinar com o casal, o ambiente, o clima e deve funcionar como a trilha sonora de um filme, com momentos de mais emoção, outros de mais tensão e, claro, de romance.

“Não dá para colocar apenas uma playlist das músicas mais tocadas em casamento e esquecer o evento”, ensina.

Até então, a música, à qual sempre foi muito ligada, era só um hobby que não lhe parecia muito promissor, ainda que o talento dela fosse reconhecido. “Na época, não tinha orientação sobre o que fazer com as minhas habilidades, que eram estética e musical”, conta.

Sorte

Parecia-lhe também que a carreira de músico dependia muito da sorte. Por isso, achava que precisava se manter em algo mais formal.

Passou três anos como designer na agência e tinha uma banda com a qual se divertia e fazia algum dinheiro. “Eu não pensava na música como profissão”, afirma.

Hoje, trabalhar para si mesma não é moleza. Letícia conta que dedica muito mais tempo do que em seus empregos anteriores, porém, para ela, é muito mais gratificante.

“Parece que não estou trabalhando. Além de eu fazer o que mais gosto, estou trabalhando com o sonho, com a alegria das pessoas, então, isso contagia a gente”, anima-se.

A criatividade que liberta

Alexandre Neves aposta suas energias na série infantil Os BolecosO publicitário Alexandre Neves de Almeida, 35, está no meio do caminho, em busca de um novo modo de ganhar a vida. Enquanto o retorno financeiro não é certo, prefere dizer que está tendo um “ano sabático” e considerar o momento como uma licença.

Ele trabalhou com marketing esportivo por 10 anos, tinha a própria empresa, organizava eventos, criava estratégias de patrocínio para atletas. Fez um mestrado da Fifa, que acontecia na Inglaterra, na Itália e na Suíça.

Trabalhou na Copa e nas Olimpíadas e, com a carreira consolidada na área, resolveu parar. “Abri mão da minha carreira por esse tempo para começar um novo projeto, coisas que eu sempre quis fazer e não tinha tempo.”

Os eventos que fazia, em geral, aconteciam em intervalos. Ele conta que 90% dos seus colegas de profissão aproveitavam esse tempo livre e o dinheiro ganho para viajar, passar até dois meses fora, em férias.

Foi aí que decidiu: em vez de fazer uma grande viagem, tiraria o ano para tentar sucesso como roteirista. Agora, todos os seus esforços estão voltados para uma série de animação infantil: Os Bolecos.

Apesar de adorar a área esportiva, ele acreditava que, depois de tantas boas experiências, só lhe restava a repetição. “Estava meio estagnado”, confessa. “Decidi entrar num mercado novo e, para isso, preciso estudar, escrever, tocar música, compor”, enumera.

A irmã de 6 anos é sua maior inspiração. Ele estava em uma reunião chata, quando começou a esboçar uma música dedicada a ela. Foi quando percebeu que precisava investir mais em seu lado criativo.

“O meu trabalho no marketing era de planejamento. Tem que solucionar problema, então, envolve pouco de criatividade. Acabou virando um ambiente que não me estimulava mais. Eu me consumia, mas não dava essa recompensa que um trabalho criativo oferece”, explica.

Mas não ter, teoricamente, nada pra fazer o dia inteiro poderia ser uma cilada. Ser dono do próprio tempo é desafiador. “Eu posso fazer tudo ou nada num dia. Posso acordar às 7h ou às 11h. Mas tenho que me sentir produtivo. Se eu ficar improdutivo, volto pro mercado, porque a ideia não é essa, e aí não tem recompensa nenhuma”, considera.

Editais

No início, preencheu seu dia com o máximo de aulas, mas, hoje, com o projeto mais encaminhado, o foco é maior e mais produtivo.

Ele estuda editais de cultura nos quais pode inscrever sua série, tem reuniões com produtoras, etc. Era um trabalho solitário, mas, pelo caminho, encontrou pessoas que embarcaram no projeto.

No mês passado, Alexandre esteve em Buenos Aires — Os Bolecos foi uma das oito animações selecionadas pelo Ventana-Sur, um evento organizado pelo Mercado do Filme do Festival de Cannes e pelo INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales da Argentina), e reúne profissionais do setor audiovisual, entre compradores, vendedores, distribuidores e produtores.

Em outro fuso

Nos últimos 12 anos, Lorena Barbosa de Oliveira, 34, e o marido, André Iacono, 39, ambos operadores do mercado de ações norte-americano, moraram em quatro países diferentes e mudaram de casa 22 vezes. Dá pra entender que os dois não gostam de mesmice. Mas foi um caminho duro até conquistarem essa liberdade.

Lorena conta que se formou em administração só porque era o que se esperava dela. “Naquela época, o pensamento era que tinha que fazer faculdade e depois ainda um cursinho para concurso e ser funcionário público”, conta.

Formada, foi morar em Londres. Viver no exterior era uma experiência que sempre quis ter, mas a mãe não deixava. Lá, conheceu André e estão juntos desde então.

Ela trabalhou em várias empresas, mas nunca ficou completamente satisfeita. Já ele fazia algo que adorava: dava aulas na Cisco Networking Academy, um programa de capacitação profissional no setor de tecnologia da informação para instituições de ensino e pessoas em todo o mundo.

Mas ele havia alcançado o topo na carreira pretendida e não tinha mais para onde crescer. Um dilema.

Em 2013, André começou a mexer com ações. Era um hobby. “Estava num restaurante, vi um homem na tevê com uma Ferrari falando sobre como ele ganhou dinheiro com isso e eu pensei: acho que preciso de uma Ferrari”, brinca.Treinou muito, tinha um mentor que lhe ensinou tudo.

Mercado

Na procura por algo que satisfizesse o casal, em 2014, os dois abriram uma empresa de cursos on-line. Podiam gerenciar a empresa de qualquer lugar do mundo e chegaram a fazê-lo de Londres e de Orlando.

Mas, no fim ano passado, perceberam que o mercado deles estava saturado e os cursos nem tão atraentes. Além disso, o que ele faturava como trader (investidor do mercado financeiro) superava o que ganhava com a empresa. Ela, então, começou a estudar e praticar também o ofício do companheiro.

A bolsa de valores norte-americana abre de segunda a sexta-feira ao meio-dia (horário de Brasília). Eles operam por cerca de uma hora, então vão almoçar e fazer o que querem ou precisam depois.

Como André gosta de dar aula, fecharam a empresa de cursos on-line e abriram a 22 Traders, na qual ele dá mentoria para quem quer operar no mercado de ações.

“Tudo que nós abandonamos foi porque não gostávamos e, agora, o dia mais esperado da semana para nós não é o fim de semana e sim a segunda-feira, porque a bolsa vai reabrir”, conta André.

Outro dia, ele ganhou US$ 2 mil em 20 segundos. Neste mesmo tempo, o mentor dele fez US$ 40 mil. Menos experiente, ela costuma fazer de US$ 20 a US$ 100 por dia.

É claro que há riscos e a forma de o casal evitá-los é não permanecer com as ações por muito tempo. Só investe a curto prazo.

Para Lorena, a experiência lhe deu educação financeira. “Antes, eu gostava de algo, comprava. Hoje, olho um sapato, vejo o preço e penso: amanhã posso dobrar esse dinheiro.”

A investidora se incomodava com a dificuldade de conseguir promoções nos empregos e aumentar seu salário. Com a abertura da primeira empresa do casal, a situação melhorou.

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