Tecnologia

Artigo: Cripto-punks, a internet e o mundo invisível

A transição aponta para um mundo onde reina absoluta a informação, o mundo do 'big data', o armazenamento que se quer infinito de dados pessoais

João Lanari - Especial para o Correio
postado em 15/02/2014 07:00
O caso Snowden expôs o armazenamento de dados confidenciais na internet
A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos. A internet é uma ameaça à civilização humana. Quem escreveu essas linhas apocalípticas foi o australiano Jules Assange, o mais conhecido dos criadores do Wikileaks, aquele sujeito que tanto irritou políticos americanos ; alguns chegaram a sugerir sua ;eliminação física; ; e atualmente amarga um asilo diplomático na embaixada do Equador, em Londres. Em 2010, com a ajuda do soldado (e transexual) Brad Manning, agora Chelsea Elizabeth Manning, e de um conjunto de jornais de prestígio global, o Wikileaks vazou um inédito pacote de comunicações sigilosas do gigante do norte, gerando uma desproporcional reação: Chelsea passou dois anos na solitária e está sendo processada por alta espionagem, enquanto o pessoal do Wikileaks segue sofrendo todo tipo de cerceamento e os jornais sumiram. A batalha pela informação, não previu Assange, é absolutamente crucial para Washington, autêntico caso de vida ou morte.

Falsas ou verdadeiras, o que importa, para além das histerias e paranóias em torno do Wikileaks (depois amplificadas pelo ;affair; Snowden), é tentar entender que mundo virtual é esse que invadiu nossas existências, que nos submergiu nessa onda digital, a ;maré alta da última etapa do capitalismo; de que falava Osvaldo de Andrade ; ou seja, a púbere internet, com seus 20 e poucos anos de existência. O ponto de partida do senso comum é insofismável: a internet é cada vez mais alguma coisa próxima da ubiquidade total. Um exemplo: encarregados de estudar uma ;taxa universal; para a web, economistas da poderosa OCDE jogaram a toalha ; embora a conclusão do estudo seja para 2015, já ficou claro que será impossível cumprir a tarefa, simplesmente porque a digitalização da economia é um tsunami irrefreável.



Acidentes como o Wikileaks e Edward Snowden, apesar de incomodarem presidentes e generais, humilhados e ofendidos, seriam apenas mais um sintoma da profunda transição que experimenta a combalida humanidade: uma transição que aponta para um mundo onde reina absoluta a informação, o mundo do ;big data;, o armazenamento que se quer infinito de dados pessoais, empresariais, sociais, governamentais e ; porque não ; confidenciais. Hospedados em ;data centers;, carinhosamente chamados de ;nuvem;, tais dados são manipulados por meio da web de forma quase impiedosa por governos e corporações, a um custo cada vez menor, e com mais eficiência. Trata-se de uma encruzilhada, como sugere o filósofo francês Bernard Stiegler: ao mesmo tempo em que os novos usos dessa colossal informação descortinam uma perspectiva de esclarecimento universal radicalmente nova, trazem embutidos uma não menos impressionante possibilidade de retrocesso e escuridão.

Demarcação do espaço

Examinar um paradoxo como esse requer um aparato crítico que escapa a Jules Assange e seus amigos, reunidos para uma conversa na embaixada equatoriana que resultou no livro Cypherpunks (Boitempo Editorial), Talvez nem fosse esse o objetivo do grupo: sua preocupação foi a de demarcar o espaço de atuação dos ;cripto-punks;, os anônimos da internet que se valem do software Tor para navegar livre da ;vigilância que ameaça sua liberdade pessoal e privacidade, atividades confidenciais de negócio e relacionamentos, além da segurança do Estado;. Ou seja, livres do registro dos IPs (;internet protocol;) e de todo o aparato da governança da internet, o famoso ICANN, entidade privada estabelecida na Califórnia, além, é claro, dos controles de segurança dos aparelhos de Estado. A dúvida ontológica de Stiegler está em outro registro: para ele, até agora a web ;engendrou a heteronomia dos indivíduos ao invés da autonomia;.

Uma sociedade fundada na hereronomia atribui suas instituições a forças extra-sociais ; deuses, ancestrais; enquanto nas sociedades autônomas os indivíduos têm consciência acerca da origem das instituições que os governam. O buraco, portanto, é mais embaixo: no plano puramente pessoal, por exemplo, o uso disseminado da internet, malgrado as incríveis oportunidades que trazem para a emancipação dos usuários, pode, ao contrário, produzir danos e consequências imprevisíveis.

Afirma Stiegler que a internet é uma espécie de ;engenharia social;, que atinge as ;minhas relações comerciais, interpessoais, científicas, culturais, familiares, educacionais, nacionais e internacionais;. Do jeito que funciona, a internet é esse grande Outro que nos governa, fragmentado em uma infinidade de pequenos Outros que exercem uma ;governabilidade algoritmica; sobre nossas vidas, operando como um rastreador de gestos e ações humanas. A web constitui-se num gigantesco aparato de leitura e escritura, fundado em processos automáticos ; hoje mais de 60 % do tráfego da internet é gerado por robôs ; que permitem a aferição dos indefectíveis metadados, aqueles que permitem ao grande Outro ; Google, Facebook , NSA e menos votados ; rastrear e nos conhecer, literalmente, por dentro. Como diz o pensador francês, ;nós somos o que lemos;, ou ainda, ;aquilo que exprimimos é o que lemos em nós mesmos;.

Excesso de informação

Tudo o que pesquisamos, lemos, usufruímos, rejeitamos, cultuamos ; tudo isso deixa pegadas digitais que são registradas e armazenadas. Definitivamente, insiste Stiegler, na web o que importa é a publicidade, a ;qualidade ou estado do que é público;, como informa o Caldas Aulete; o que cria, por conseguinte, uma enorme confusão entre o que é público e privado. Os vazamentos dos ;cripto-punks; Wikileaks e Snowden, para a perplexidade de quem estava mal informado, realçaram o fato de que a ;possibilidade mesma de sigilo e confidencialidade parece estar desaparecendo com a digitalização da vida diária;. Ninguém ; dos poderosos aos humildes, desde que ;incluídos digitalmente; ; está livre de ter o recôndito do seu ser exposto à luz do dia.

E mais: essa exposição nos seduz e hipnotiza, funcionando com um fetiche narcisista que potencializa o consumismo e o retroalimenta, como podem ser as redes sociais. Uma derivação ainda mais perversa desse reino do ;excesso de informação; é o que Evgeny Morozov, outro instigante investigador da web, chama de ;a gradual evaporação do espírito democrático em nosso sistema político;. Essa evaporação é turbinada pela irresistível adesão que professamos a todas essas incríveis facilidades que o uso crescente dos serviços de ;big data; acarreta, incorporando-se indelevelmente na nossa estrutura cognitiva, nossa capacidade de questionar, duvidar, deliberar e decidir: a sedução e captação de nossa interioridade, do nosso inconsciente, ademais de nos aprisionar no círculo interminável da mercadoria e consumo, termina apontando para a velha e conhecida alienação da vida política.

O cenário não é tão sombrio, afinal a internet está presente em diversas frentes políticas (o próprio Wikileaks teve um papel importante na transição da Tunísia). Bernard Stiegler refere-se à ambigüidade do termo grego ;pharmakon; para pensar a web na vida contemporânea ; de acordo com a Wikipidia, esse formidável recurso P2P de conhecimento, foi Jacques Derrida quem em seu livro A farmácia de Platão recuperou a discussão da sobre a tradução do termo, a um só tempo remédio e veneno, para os dias de hoje. Foi em Fédon diálogo cujo tema é a imortalidade da alma, que o infalível Sócrates usou a palavra: ;pharmakon; associa-se a indeterminação, incerteza. Remédio e veneno: e tudo mais que está entre eles, em uma palavra, internet.

João Lanari Bo
Professor de cinema da Unb


Conheça a programação do Seminário Políticas e Telecomunicações

A Universidade de Brasília promove, na próxima quarta-feira, no Auditório da Finatec, o Seminário Políticas de Tele (comunicações)

9h15 ; O balanço das políticas do atual governo

Palestrantes: Paulo Bernardo, ministro das Comunicações; João Rezende, presidente da Anatel; Manoel Rangel, presidente da Ancine.

11h ; O balanço das políticas à luz da sociedade

Palestrante: Murilo Ramos, cooordenador do CCOM/UnB

Debatedores: Antonio Carlos Valente, presidente do Grupo Telefônica; Manoel Rangel, presidente da Ancine; Daniel Slaviero, presidente da Abert; Maximinano Martinhão, secretário de Telecomunicações do Ministério das Comunicações

14h ; O novo ambiente das políticas e regulação da internet

Palestrantes: Virgílio Almeida, secretário de políticas de informática do Ministério de Ciência e Tecnologia; Igor Freitas, conselheiro da Anatel

Debatedores: Ana Luiza Valadares, presdiente da ABDTIC; Eduardo Levy, diretor executivo da Telebrasil; João Lanari Bo, diplomata, professor e pesquisador da UnB

16h ; Políticas e cenários para a tevê aberta, internet e uso do espectro

Palestrante: Genildo Lins, secretário executivo do Ministério das Comunicações

Debatedores: Roberto Franco, presidente do Fórum de TV Digital; Nelson Breve, presidente da EBC; Amadeu Castro, diretor geral da GSMA no Brasil; Juliano Carvalho, pesquisador da Unesp/Bauru

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