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Projeto estuda meios de diminuir traumas em crianças que sofrem abusos

Congresso analisa projeto que cria mecanismo para evitar que crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual precisem reviver o sofrimento vezes sem conta na Justiça. A idéia é impedir a chamada revitimização

postado em 16/05/2008 09:20

As crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual que chegam a fazer denúncia contra seus algozes precisam, além de reviver o trauma, enfrentar uma nova rota de sofrimento. Do relato da agressão no conselho tutelar, à repetição da história na delegacia, Instituto Médico Legal (IML) e no atendimento de saúde até que seja apresentado o depoimento ao Judiciário, o menor passa por um calvário que os especialistas chamam de revitimização. O martírio pode ser evitado com um procedimento comum no Processo Civil, mas sem precedentes no Direito Penal: a chamada produção antecipada de prova. A idéia é gravar o depoimento da criança quando a denúncia é aceita pela Justiça para pôr fim à repetição do espinhoso relato, durante o desenrolar do processo.

;A evidência é produzida com os elementos constitucionais, de ampla defesa e do contraditório e acaba com o excesso de exposição da vítima. Ouvir 200 vezes a história da criança dificulta a produção de prova. Como o adulto, a criança está sujeita à falsa memória ou a um relato diferente toda vez que tem que contar como tudo aconteceu;, observa o juiz José Antônio Daltoe Cezar, da 2; Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, onde a medida é aplicada desde 2003.

A idéia é gravar o depoimento em forma de audiência, mas em uma sala de reconhecimento. De um lado, o ambiente é especialmente preparado para acolher a criança, onde um profissional qualificado para lidar com o público infantil faz a abordagem ; que é filmada. Do outro, juiz, promotor, advogado e réu, quando for o caso, acompanham através de um vidro espelhado o que a criança vai dizer. ;A pessoa com a criança fica com um ponto na orelha para escutar as indagações de quem está do outro lado e assim conduzir a entrevista;, esclarece Daltoe. A imagem pode ser utilizada durante todo o processo.

A proposta pode ser adotada em todo o país. A previsão faz parte do projeto de lei Depoimento sem Dano, já aprovado na Câmara dos Deputados e hoje aguardando apreciação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado ; sem data marcada para ir à votação. A intenção da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente é tornar a medida obrigatória em todo o país, com a inclusão do dispositivo como capítulo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). ;Esperamos que a CCJ do Senado encaminhe a matéria para votação em plenário em torno de 18 de maio para termos o que comemorar;, afirma a deputada Maria do Rosário (PT-RS). A data marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Cultura punitiva
Segundo Rosário, o depoimento sem dano vai contribuir para acabar com a ;cultura punitiva; e humanizar o atendimento ao jovem. ;As autoridades partem do princípio de que a vítima está na condição de abuso porque quer. Mesmo nos ambientes domésticos é comum a criança contar a alguém o que está se passando com ela, mas não lhe é dada credibilidade. O caso da nadadora Joanna Maranhão é emblemático;, ressalta a deputada.

No início do ano, a desportista olímpica ; recém classificada para Pequim ; revelou à imprensa que foi molestada sexualmente aos 9 anos de idade pelo seu treinador. Joanna só contou à mãe o que passou na infância quando tinha 21 anos, ou seja, passados 12 anos, e só depois de buscar ajuda de terapeutas e psiquiatras. ;É muito traumático falar. Cada vez que eu falo me lembro de algum detalhe que havia esquecido;, explica Joanna. Em março, a nadadora chorou ao ver o homem que a traumatizou. Joanna teve de passar pelo mesmo ciclo de revitimização porque o ex-professor de natação Eugênio Miranda a acusou de difamação. ;Sou favorável a tudo o que for feito para amenizar o trauma;, defendeu Joanna.

Para a delegada Gláucia Ésper, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Brasília, a revitimização precisa ser evitada, mas com o cuidado de não prejudicar a investigação da polícia. Segundo Gláucia, o procedimento não pode ser antes de a polícia conseguir as provas e ter os elementos necessários para o julgamento na Justiça. ;Se a criança fala que o agressor usou camisinha, temos de ir atrás antes do advogado do réu saber, se não ele (advogado) pode pedir para alguém limpar o local e tirar a prova do crime;, justifica.

De acordo com Leila Paiva, coordenadora do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Criança e Adolescente, o disque-denúncia (Disque 100) da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente recebe em média 2,5 mil ligações por dia. No ano passado, 7.120 casos foram notificados como abuso. De janeiro a abril de 2008, o registro de denúncia chegou a 3.137. ;O depoimento sem dano vai diminuir bastante o fato da criança ter de falar de novo da agressão sofrida e relembrar toda a história. Às vezes ocorre que a criança é ouvida pelo juiz até um ano depois;, observa.

"É muito traumático falar. Cada vez que eu falo me lembro de algum detalhe que havia esquecido. Sou favorável a tudo o que for feito para amenizar o trauma"
Joanna Maranhão, nadadora

O número
7.120
casos de abuso foram registrados em 2007 no disque-denúncia da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

Depoimento sem Dano surgiu em Porto Alegre
Depoimentos sem danos para crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual (a produção antecipada de prova) existem de forma tímida no Rio Grande do Sul há cinco anos. A medida, iniciada na capital gaúcha, Porto Alegre, está atualmente em 14 das 170 comarcas do estado. Porto Velho (RO) e Campo Grande (MS) acabaram de implantar o sistema e a Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente está com um edital em andamento para instalação do serviço em mais quatro estados.

;Imagine uma criança em uma sala de audiência com pelo menos quatro pessoas e tendo de falar sobre a agressão e ouvir perguntas sobre o problema. Mesmo que o juiz diga à criança para não responder a uma pergunta específica que o advogado da defesa venha a fazer, o mal está feito;, lembra o juiz José Antônio Daltoe Cezar, da 2; Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre. Segundo Daltoe, o procedimento que evita a revitimização existe na França e em Cuba desde 1998 e na Argentina passou a vigorar em 2004.

Mesmo com o pioneirismo de Porto Alegre, segundo Daltoe, nem todos os juizes do estado adotam a prática ou os promotores concordam em procurar uma comarca que ofereça o sistema. ;As 14 cidades estão distribuídas geograficamente, mas tem gente que não quer se deslocar ou acredita que os cuidados que toma nas audiências são suficientes;, explica.

O sistema não existe em Brasília, mas as vítimas de abuso sexual no Distrito Federal contam com um atendimento diferencial na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), no Departamento de Polícia Especializada (DPE). Foi em busca de diminuir o dano na vida do filho de 3 anos que uma moradora de Samambaia fez denúncia esta semana do abuso sexual sofrido pelo menino. Vendo o martírio que é relatar a história, ela defendeu a adoção do Depoimento Sem Dano DF. ;Quanto mais rápido solucionar, melhor. É um sofrimento para mim e para ele (a criança) ter que viver essa situação mais de uma vez;, justifica.

Bonecos
A DPCA da capital é uma das poucas do país que tem uma infra-estrutura apropriada para abordagem de crianças e adolescentes. Em uma sala denominada de Serviço de Atendimento Técnico (SAT), bonecos de todos os perfis: brancos e negros, com cabelos encaracolados e lisos, na cor preta, castanha e loira tentam imitar o máximo possível a realidade humana e facilitar o depoimento das crianças. ;Em alguns casos, elas acham normal o que relatam porque desde bebê eram bolinadas. Quando tomam consciência é um trauma;, explica a delegada Gláucia Ésper, titular da DPCA.

;Se tem algo que precisamos dizer no 18 de maio é: acreditem nas crianças;, ressalta a deputada Maria do Rosário (PT-RS), da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. A data marca o dia nacional de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Como a data este ano cai em um domingo, foi lembrada timidamente pelo Congresso na última quarta-feira. Defensores dos direitos da criança e alguns parlamentares da frente se reuniram na Praça dos Três Poderes e saíram em marcha, passaram em frente ao Palácio do Planalto e da Justiça e se concentraram na Alameda das Bandeiras para um ato ecumênico, onde representantes e religiosos lembraram as crianças vítimas de violência.

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