Belo Horizonte ; Bairro Taquaril, Região Leste de Belo Horizonte. Fábio Henrique Ferreira da Silva, 12 anos, mostra as garrafas de cachaça vazias lançadas no rio preto de esgoto a menos de 20m da porta de sua casa. Garante que os pés descalços não doem quando pisam no que restou de uma casa demolida no lote ao lado, lugar de soltar papagaios com os irmãos Maicon, 11, e Pablo, 13. Prefere não falar sobre o vaivém de rapazes na escadaria perto da janela de casa e dos tiros (que vêm deles, desconfia), durante a noite. Depois das 21h, Flávio dorme e está cansado, porque passou o dia na Escola Municipal Alcida Torres. Lá, ele estuda, mas também almoça, joga bola, lancha e participa de oficinas. A mesma rotina vive Joel Alves Teixeira, 11, que sonha, um dia, ter uma oficina mecânica. ;Se não vier para cá (escola), não sei se vou ser alguém na vida;, gosta de repetir o garoto, citando o discurso da mãe.
A despeito da desigualdade social que ainda berra em um dos bairros mais pobres da capital mineira (a renda média do Taquaril é de R$ 259; a de BH, R$ 1,2 mil), o futuro de meninos e meninas da região vai sendo moldado com cuidados que não existiam à época de seus pais e avós. Dezoito anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o avanço das políticas de atendimento à infância são sinais de esperança não apenas para famílias da região, mas para toda cidade. O esforço de Belo Horizonte foi reconhecido pelo Programa Prefeito Amigo da Criança, da Fundação Abrinq, que analisou a evolução de indicadores de saúde, educação e proteção social na capital mineira na última gestão.
De 2,2 mil municípios do país que se disseram comprometidos com a melhoria da qualidade de vida de crianças e adolescentes, 139 foram agraciados. São lugares onde direitos preconizados pelo ECA saíram do papel e se materializaram em uma rede de proteção mais fortalecida. ;Os programas e projetos em curso ainda não atendem toda a demanda, mas houve muito avanço nos últimos anos, isso é inegável;, afirma o conselheiro tutelar da Região Leste, Samuel Viana Moreira, 41 anos, cuja função é realizar o primeiro atendimento a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados. O discurso dos profissionais que trabalham nos nove conselhos espalhados pela cidade é um bom termômetro para medir a qualidade das ferramentas e mecanismos de proteção disponíveis a 775 mil pessoas de até 18 anos que vivem em Belo Horizonte.
Evolução
Samuel ocupou o cargo pela primeira vez em 1999 e voltou a ser eleito no ano passado. Nesse tempo, viu o Programa Sentinela (que atende vítimas de abuso e exploração sexual) passar a atuar dentro dos conselhos e assistiu à criação de uma delegacia especializada em apurar crimes que vitimizam crianças e adolescentes. Observou o fortalecimento da estrutura dos programas Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), voltados a adolescentes sentenciados a cumprir medidas socioeducativas em liberdade. E acompanhou de perto a evolução do atendimento nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), porta de entrada dos cidadãos às políticas municipais em áreas vulneráveis que valoriza os vínculos familiares. Hoje a cidade tem 15 centros, mas a população quer mais: na última edição do Orçamento Participativo, moradores pediram mais 22 espaços para a cidade.
;Os conselhos estão bem estruturados e o direito à educação está assegurado, mas nem sempre perto da casa dos meninos, como determina o ECA. Nesses casos, a Secretaria de Educação leva grupos, em ônibus, para outras unidades de ensino;, conta Samuel. Se o pedido de vaga do conselho não for atendido, o caso é encaminhado ao Ministério Público. Um dos papéis do conselheiro é visitar as famílias quando uma criança deixa de ir à aula. Dificilmente Samuel precisará visitar, um dia, a casa dos meninos citados no início desta matéria; eles adoram ir à escola. Estão entre os 350 alunos da Escola Municipal Alcida Torres inscritos no Programa Escola Integrada (31,5% do total de matriculados), iniciativa que estende o turno da aula com atividades diversas.
Se não participassem do programa, Fábio, Maicon e Pablo ficariam sozinhos em casa, pois a mãe trabalha o dia todo como empregada doméstica. Raquel Lima Barbosa Maia, de 11 anos, prefere as aulas de artesanato extraclasse, mas quer mesmo cursar medicina. Quando leu um texto sobre o ECA em livro de português, soube que os direitos à educação, cultura, esporte e lazer estão em lei, por isso, não podem ser desrespeitados. ;Os governos tinham a obrigação de fazer isso (oferecer programas como o Escola Integrada), mas a sensação é de que estão fazendo favor, porque nem todo mundo participa;, afirma a menina.
Para que a política da infância e adolescência em BH continue fortalecida, a Fundação Abrinq convidará os principais candidatos à prefeitura da capital a assinar um termo de compromisso para que, se eleitos, adiram ao Prefeito Amigo da Criança. ;O desafio é fazer um novo diagnóstico e estabelecer metas a serem cumpridas até o fim da gestão;, sugere Hélder Delena, da Fundação Abrinq. Se os investimentos entre 2009 e 2012 não resultarem em melhorias nas condições de vida das crianças, a cidade perderá o reconhecimento do programa.
CERIMÔNIA NO CONGRESSO
Uma sessão solene conjunta comemorou ontem, no Congresso Nacional, os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Deputados e senadores da Frente Parlamentar de Defesa da Criança e do Adolescente aproveitaram para propor aos candidatos às prefeituras e câmaras de vereadores 18 compromissos para garantir os direitos de meninas e meninos. Entre eles, a ampliação de recursos no orçamento, a melhoria da qualidade do ensino e a garantia do pleno funcionamento dos conselhos tutelares. ;Na época de campanha, não é raro ver políticos segurar crianças no colo e dizer que são o futuro do país. Mas é comum eles esquecerem desses compromissos quando se elegem; ,lembrou a senadora Patrícia Saboya (PDT-CE).
Revolução no orçamento
Qualquer cidadão de Belo Horizonte pode acompanhar como e quando a prefeitura municipal investe em políticas para quem tem menos de 18 anos. Incluído no ano passado na Lei do Orçamento Anual (LOA) e uma das recomendações mais interessantes do programa da Fundação Abrinq, o Orçamento da Criança e do Adolescente (OCA) é uma ferramenta que facilita a visualização dos investimentos na área e o acompanhamento da execução orçamentária. ;As pessoas têm uma noção maior do que é investido e quanto se pretendia gastar. A sociedade passa a ter maior controle dos gastos, em um processo transparente e mais participativo;, elogia Hélder Delena, coordenador do Prefeito Amigo da Criança.
No OCA, as ações voltadas exclusivamente para meninos e meninas são contabilizadas integralmente; já as políticas não são exclusivas e citadas com valores proporcionais à população infanto-juvenil (32% dos moradores de BH). ;No orçamento de 2008, estão aprovados R$ 1,2 bilhão em obras e R$ 1,6 bilhão para o OCA, 31% do orçamento do município. O comparativo mostra que a cidade faz da criança sua prioridade;, defende Beth Leitão, que nos últimos anos atuou como articuladora municipal do Prefeito Amigo da Criança em Belo Horizonte e, atualmente, é secretária de assistência social.
O OCA é acompanhado por uma comissão monitoramento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o que permite à sociedade civil e ao Judiciário cobrar a execução integral das políticas previstas. Em 2005, a prefeitura fez o primeiro acompanhamento orçamentário mas, como o OCA não estava incluído na lei de orçamento, os dados eram apresentados com mais de um ano de atraso. A análise dos números permitiu à população ter notícias boas ; em 2005 formam investidos 92% de quase R$ 1 milhão previstos para ações de fortalecimento do Cmdca ; e ruins ; em 2006, a administração aplicou apenas R$ 501,9 milhões de R$ 610 milhões previstos para educação. (TH)
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