postado em 12/07/2008 09:26
Ângelo*, 7 anos, parece pouco à vontade com a casa nova. Sentado no sofá, mal se mexe. As mãozinhas sobre os joelhos, a voz quase inaudível e o jeito assustado mostram que o menino ainda vai demorar para se acostumar com a idéia de que, daqui para frente, aquele é seu novo lar. Há menos de um mês, ele mora num abrigo. Mas Ângelo não é órfão. Tem pai e mãe, ambos vivendo no Distrito Federal. A criança perdeu o direito ao convívio familiar simplesmente porque é pobre.
Histórias como a dele são regra, e não exceção. De acordo com o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 18 anos amanhã, ;a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder;. A lei também garante que, ;a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio;. Não é, porém, o que acontece. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a principal causa de abrigamento no país é a falta de dinheiro dos pais (veja quadro nesta página).
No caso de Ângelo, o pai, pedreiro em Sobradinho, batia no menino e nos outros dois filhos. Foi denunciado ao conselho tutelar da cidade. A criança não pode ficar com a mãe. Ela mora numa chácara e está desempregada. No abrigo, Ângelo vive com a mãe social numa casa, dividida com mais seis crianças. Ao contrário das condições anteriores, ali ele tem de tudo: cama, comida, televisão, acesso à escola e muito carinho dos funcionários. Mas não consegue esconder o desejo de ver a família novamente unida. ;Acho que vou ficar aqui para o resto da vida;, diz, com olhar tristonho.
;A natureza de um abrigo deveria ser a provisoriedade;, admite o advogado Valdemar Martins da Silva, presidente da Casa de Ismael, abrigo mantido por um centro espírita da Asa Norte. Ele lembra, porém, que é difícil seguir o ECA ao pé da letra enquanto existirem famílias vivendo na pobreza extrema. ;Um menino que não tem casa nem comida está em situação de risco;, diz. ;O país tem políticas públicas excelentes, mas de execução precária. Não é uma doação que vai salvar a família a ponto desta conseguir manter três, quatro, cinco filhos;, alega, com a experiência de 18 anos ; a mesma idade do ECA ; à frente do abrigo.
Famílias carentes
Para Paulo Afonso Garrido de Paula, procurador de Justiça de São Paulo , um dos redatores do Estatuto, a destituição do poder familiar jamais poderia ocorrer por falta de condições sociais. A família teria de ser colocada num programa de geração de renda. Não existe criança carente, a carência é da família;, argumenta. ;A melhor forma de proteção, por parte do Estado, é essa: garantir o direito dos pais de cuidar da própria prole.;
Segundo o advogado Valdemar Martins da Silva, o Plano Distrital de Pró-Convivência Familiar e Comunitária, aprovado em junho passado, reforça a tese de que, sem o reforço da renda dos pais, é quase impossível garantir a reinserção de crianças e adolescentes. O documento mostrou que 92% das crianças reintegradas às famílias retornam aos abrigos dois anos depois. Foi o que ocorreu com Laura*, 10 anos, acolhida pela segunda vez neste ano. Ela morava com a mãe e quatro irmãos em Samambaia até ser encaminhada a um abrigo de Taguatinga. A mãe trabalha revendendo jornais nos semáforos. Do pai, pouco sabe. ;Só que ele mora em Pedregal;, diz. Laura não ia à escola. Sobre a casa em que morava, resume: ;Era horrorosa;.
A volta à família durou menos de um mês. Hoje, ela vive em outra instituição. Foi matriculada numa escola, gosta de brincar no parquinho e já fez amizades. A todo tempo, conta que a mãe vai buscá-la. Mas não sabe dizer quando. Para que os vínculos familiares não sejam perdidos, o abrigo promove o reencontro de Laura com a mãe nos fins de semana. Mesmo assim, a menina lamenta a falta do convívio direto: ;Eu sinto saudades dela;, confessa.
Em outubro do ano passado, o governo federal anunciou o ;PAC da Criança;, com diversas ações e programas voltados à proteção da infância. Entre eles, o Caminho para Casa, que tem como objetivo resgatar crianças e adolescentes abrigados por causa da pobreza. Quarenta mil famílias receberiam um total de R$ 1,5 mil para garantir o retorno de meninos e meninas. O dinheiro, cuja aplicação seria acompanhada por assistentes sociais, deveria ser usado para reequipar a casa e ajudar os pais a investir em alguma atividade geradora de renda. Os R$ 133,7 milhões previstos para o período 2008-2010, porém, ainda não saíram do papel. Nem o diagnóstico dos abrigados no país começou a ser feito.
;Isso é muito grave porque foi anunciado como uma das principais medidas do PAC da criança. Não podemos mais ter programas e planos fictícios, que jamais saem do papel. O que o governo anuncia tem de efetivamente estar em prática, pois gera uma expectativa muito grande das próprias famílias e crianças;, critica o advogado Ariel Castro, do Movimento Nacional de Direitos Humanos. Para ele, uma das áreas que menos avançou do ECA é justamente a que trata das crianças e adolescentes abrigados. ;Muitos desses abrigos têm uma estrutura repressiva, de privação de liberdade;, denuncia.
Porém, o advogado reconhece que, depois do Estatuto, ao menos houve a diferenciação entre pessoas em situação daquelas que cometeram atos infracionais. Pelo Código de Menores, de 1979, que vigorou até a promulgação do ECA, órfãos e abandonados eram internados nos mesmos locais de adolescentes em conflito com a lei.
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* Nomes fictícios, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente