Em meados dos anos 1990, quando o Rio era dominado por chefões do tráfico como Elias Maluco, Uê e Marcinho VP, uma moça loura, bronzeada de sol e de tipo mignon subiu o morro para acabar com a era dos poderosos empresários da cocaína. Seja nas operações in loco ou na área de inteligência da Polícia Civil, a inspetora Marina Maggessi, depois delegada, enfrentou alguns dos homens mais temidos do país. Eleita deputada federal pelo PPS, Marina, 49 anos, acaba de lançar a autobiografia Dura na queda (Objetiva). No livro, revela as fragilidades da inspetora que ganhou a simpatia da classe artística, da imprensa e dos colegas de corporação. Pela primeira vez, revela que foi vítima de abuso sexual, aos 7 anos, cometido por um tio. Também conta que, embora católica de freqüentar a missa todos os domingos, fez um aborto que teve como conseqüência não só o sentimento de culpa como a infertilidade para o resto da vida. Filha de um típico playboy da década de 1950 com uma mulher simples, do interior, Marina teve uma infância complicada. O pai, alcoólatra, espancava a mãe, sob os olhares temerosos dos três filhos. A família passou por dificuldades financeiras, a ponto de Marina ser mordida por ratos no barraco onde moravam. Foi na educação que a então menina encontrou a salvação. Estudiosa, não poupou esforços para garantir uma bolsa de estudos num dos melhores colégios do Rio. Formada em jornalismo, profissão que nunca exerceu, Marina viveu a juventude como uma típica carioca. Pensava em ser repórter até que surgiu um concurso para a Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ela desafiou preconceitos, ganhou o respeito dos colegas e se firmou como a inimiga número 1 dos traficantes cariocas. Mesmo sofrendo o baque de ser acusada de receber dinheiro do jogo do bicho ; acusação jamais provada ;, Marina seguiu em frente. Em Brasília, continua combatendo o crime, na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara. No lançamento de Dura na Queda, que poderá ser transformado em minissérie da Rede Globo, ela conta que recebeu, como nunca, o apoio dos amigos. Entre eles, o jogador Romário, a empresária Flora Gil e o rapper MV Bill. Sem papas na língua, Marina revela detalhes das operações policiais das quais participou com a mesma naturalidade com que fala de sua vida pessoal. Garante, por exemplo, que, ao contrário do que muita gente diz por aí, não é lésbica. Pelo contrário, conta que amou muitos homens. Em entrevista ao Correio, a deputada desabafa sobre as perseguições sofridas dentro da corporação e fala sobre a situação atual do tráfico no país. No livro, a senhora revela episódios marcantes, como o aborto que fez e o abuso sexual de que foi vítima. Torná-los públicos foi uma espécie de catarse? Não tenha dúvida. Foi uma catarse tremenda. Todo mundo sempre me viu como uma menina superpoderosa, e não sabe que já sofri coisas atrozes. A parte do aborto eu pensei em tirar porque eu sou católica. Você conhece a Igreja? Mas, depois que eu vi aquilo escrito eu pensei: ;Eu não tenho direito de tirar essa parte;. Acho que sua vida é para isso, mostrar os exemplos, e cada um se vira do jeito que pode. A senhora diz que seus piores inimigos não são os bandidos, mas a própria polícia. Por quê?
Quando o doutor Álvaro Lins (deputado estadual pelo PMDB, ex-chefe da Polícia Civil fluminense, acusado pela Polícia Federal de associação com a máfia) começou a ser alvo de ataques, todo mundo que estava em volta dele começou a ser envolvido. E eles conseguiram pegar alguns que tinham envolvimento e outros que não. A minha vida pessoal foi devassada. Tenho 20 anos de polícia, na época tinha 18. Eu moro de aluguel num apartamento de 50m; com a minha família. Ninguém da minha família tem casa própria, ninguém tem bens, sempre vivi com o salário de polícia. Graças a Deus, não acharam nada e começaram a plantar aquelas coisas (Marina Maggessi foi acusada de receber dinheiro do jogo do bicho). A minha expectativa com a noite de autógrafo era para ver minha recepção. Queria saber se o pessoal ainda acreditava em mim. E foi muito bonito, uma festa linda. Estava todo mundo ali, não só os famosos, mas todos os meus amigos da polícia, da infância, um amor tremendo. A senhora acha que o tráfico poderá influenciar as eleições do Rio?
Isso já está acontecendo. Todo mundo fala: ;Vamos impugnar tal candidatura;, mas não vai adiantar nada, porque o tráfico vai escolher outro candidato. O pior foi o tráfico ter ouvido que eles podem se fortalecer politicamente. Isso é muito perigoso. Mais que o próprio fuzil. Como se chegou a isso?
Por causa do abandono total. Inclusive o nosso, porque o governo que está lá fomos nós quem colocamos. Aqui no Rio é assim, toda hora você vê mudar o discurso: ;Tem que matar ou não tem que matar, tem que matar ou não tem que matar;. Agora, a polícia não vai ter mais fuzil, já imaginou? Meus amigos estão dizendo que os vagabundos conversam entre eles e falam: ;A partir de agosto a rua é nossa;. Já imaginou o perigo? Por que nunca mais vimos prisões de traficantes que se tornaram célebres como Uê e Marcinho VP? O perfil dos donos do morro mudou?
Eles não existem mais. Os grande traficantes não usavam drogas, então eles tinham controle das coisas. Só que eles foram sendo presos e mortos durante a década de 1990. Como em qualquer exército, foram subindo aqueles mais novos. E aí foi subindo quem? Quem era ;vapor; deles, ou seja, os empregadinhos que eram pagos com cocaína, mantidos viciados para serem controlados. Só que eles não sabem ler nem escrever, têm 20 palavras no vocabulário e são extremamente violentos, por causa da cocaína. É muito mais difícil combater essa gente do que o crime organizado. Porque eles não têm rotina, método nem critério. Eles cheiram tudo o que eles vendem. Aí vão pra rua, roubam, assaltam. Não é igual a um cara que deixa rastro. O Uê, por exemplo, a gente prendeu porque ele tinha três aviões na fronteira com o Paraguai, era dono de metade de Novo Hamburgo. Então ficava fácil. Os traficantes controlam a venda de drogas de dentro dos presídios. Onde está o problema?
Há uma conivência de uma grande rede. E tem outra coisa. Colocar o Fernandinho Beira-Mar e o Juan Carlos Abadía na mesma prisão é um absurdo, não entendo como ninguém enxerga isso. Prisão federal é o maior absurdo que existe hoje no Brasil. É a federalização do crime. Eles têm um poder de influência muito grande, eles levam um know how para os presos que estão ali. Aí junta tudo, vira um consórcio no crime e eles estão no controle. O que esses caras estão fazendo em Catanduvas (presídio federal)? É porque cria aquele factóide político: ;Vou mandar ele pra lá porque vai melhorar o crime aqui;. O que é que melhorou? Estão lá antes da Rosinha (Rosângela Garotinho, do PMDB, que governou o Rio entre 2003 e 2007) sair do governo, porque foi ela que criou esse factóide de ;vou mandar eles pra lá e tudo vai ficar bem;. É mentira. A senhora afirma no livro que a classe média abastece o tráfico. Defensores de drogas como a maconha alegam que, com a legalização, o tráfico estaria fadado ao fracasso. É um argumento lógico?
Maconha é maconha, cocaína é outra coisa. A onda da maconha é de lerdeza, não é a de violência, de maldade, da cocaína. São duas coisas completamente diferentes, que estão sendo tratadas da mesma maneira. Dizer que pode liberar a cocaína para vender na farmácia e reverter os impostos para o usuário, isso é uma hipocrisia enorme. Qual é o imposto que resolve alguma coisa neste país? Segundo: hoje, os morros têm fuzis porque as pessoas têm medo que outras invadam para tomar seu ponto de drogas. A farmácia vai ter que ter fuzil também. O usuário que não tem grana vai ter que invadir farmácia para roubar. Outra coisa: a cocaína é cara em todo o mundo. Com os tais impostos, vai ficar ainda mais. O que gera a violência no Rio? É o usuário na rua, roubando para comprar cocaína. Um levantamento do Ministério da Saúde mostrou que, a cada dois dias, três pessoas são mortas por policiais. Como acabar com essa cultura de extermínio, que acaba fazendo com que a população sinta medo da polícia?
Para a gente acabar com isso, a gente tem de combinar com o bandido, então. Combinar: você não dá tiro na gente e a gente não dá tiro em você. Porque o poder de fogo dos traficantes cariocas é uma coisa de louco. Quem fica falando esse tipo de coisa fica atrás de uma mesa, lá longe, com ar-condicionado. Então vamos acabar logo com a polícia. Isso é um absurdo. As mortes são muitas? São e vão aumentar, do jeito que está essa política só de confronto, só de repressão. Em 2003, acabamos com o tráfico na Vila Cruzeiro com a prisão do Elias Maluco. Como está a Vila Cruzeiro hoje? Voltou tudo. Ninguém fez nada. Qual avaliação que a senhora faz do seu mandato?
Está sendo bom, faço parte de três comissões: Relações Exteriores, Meio Ambiente, mas, o mais maneiro, é que sou a primeira mulher vice-presidente da comissão de Segurança Pública. E já consegui conquistar o respeito dos meus pares. A senhora sente falta da vida de policial?
Sinto muita falta. Mas estou começando a aprender de gostar da política, do trabalho das comissões. Gosto muito de relatar, de debater, encontrei ali um trabalho gratificante. E eu já estou meio velhinha, vou fazer 50 anos. (risos)