Brasil

Entrevista: Célio da Cunha, assessor da Unesco

Assessor especial da Unesco lança livro em que prega o fim da disciplina infantil baseada na violência

postado em 13/08/2008 09:27
Considerada por muitos como assunto de família, a violência física contra crianças deve ser cada vez mais discutida no contexto da educação. A tese é defendida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que vai lançar, na próxima semana, a publicação ainda inédita no Brasil O caminho para uma disciplina infantil construtiva: eliminando castigos corporais, na Bienal Internacional do Livro, em São Paulo. Apesar de combatida por entidades defensoras dos direitos humanos e por tratados das Nações Unidas, a prática ainda é comum. Dos 194 países independentes do mundo, apenas 13 conseguiram erradicá-la completamente. Para se ter uma idéia, 96% da população caribenha acredita que os maus-tratos físicos são educativos e significam o amor dos pais. No Brasil, não é diferente. Se as escolas já não fazem mais uso de palmatórias para os alunos indisciplinados, dentro de casa as crianças continuam vítimas de agressão. De acordo com o Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência (Sipia), os conselhos tutelares registraram, no ano passado, 95.726 casos de atentados contra a vida e a saúde de meninos e meninas. Os principais agentes violadores são os pais e responsáveis. ;Crianças punidas fisicamente têm menos probabilidade de internalizar valores do que aquelas que não sofrem. São inúmeras as conseqüências. Inclusive, cognitivas. Dos fatores que impedem a aprendizagem, 80% são de fundo emocional;, diz o professor Célio da Cunha, assessor especial da Unesco no Brasil. Há 12 anos no órgão das Nações Unidas, o educador vai se aposentar do cargo no fim de mês que vem, quando volta a dar aulas na Universidade de Brasília. Em entrevista ao Correio, ele defende a integração da escola e da família no combate à violência contra a criança. Para Célio da Cunha, os adultos ainda não compreendem a visão de mundo própria da infância. Por isso, recorrem ao castigo físico quando querem ser obedecidos. E acabam não percebendo os males que a prática pode provocar. Mais do que deixar marcas físicas, a violência pode eliminar a auto-estima, elemento que, segundo ele, deve ser trabalhado incessantemente nas escolas. ;Um país com população que tenha essa auto-confiança é muito mais criativo, produz muito mais, tem implicações diretas até na melhoria da competitividade. Educar para a autoconfiança é um investimento;, sustenta. O assessor da Unesco diz que somente quando escola e família tentarem resolver, juntas, o problema, com a construção de valores, é que as crianças estarão livres dos castigos físicos. ;O ser humano só pode acrescentar algo tendo uma escola, uma família, que possam proporcionar essa evolução intelectual, física, emocional, psicológica, num clima saudável;, defende. Não aos castigos corporais Questão cultural O castigo corporal é uma prática de várias culturas, é uma questão histórica. Você tem até uma evolução histórica das diversas fases do castigo corporal. No fim do século 19, por exemplo, o pai era o detentor do filho. Podia fazer com ele o que quisesse. Houve até um caso na Inglaterra, em 1860, onde a criança morreu de tanto apanhar, e o juiz ainda falou que era direito dos pais fazer isso. Depois, você vai ter uma fase mais no começo do século 20 quando, sobretudo pelas pesquisas no campo da psicologia, começam a existir os questionamentos. E chega-se até uma fase mais recente, de luta para a completa eliminação do castigo corporal em função daquilo que se proclama no mundo todo, que está no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que é assegurar à criança a plenitude de seu desenvolvimento. Estímulo à evolução A grande tese que está por trás disso é a seguinte: o ser humano, ao nascer, é único. Todo ser humano que nasce acrescenta algo ao mundo. Qual o papel da educação? Revelar esse algo que ele acrescenta. Ele só pode acrescentar tendo uma escola, uma família, que possam proporcionar essa evolução intelectual, física, emocional, psicológica, num clima saudável. Você pode conseguir que uma criança faça aquilo que você quiser que ela faça, usando a força. Mas existe uma diferença muito grande entre obedecer à força e a obediência que vem de uma conscientização, de uma internalização de valores. Violência em casa Nas escolas, os castigos físicos diminuíram muito. As pesquisas da Unesco revelam, porém, muita violência entre os estudantes e muita violência simbólica. Aqueles castigos que os professores davam antigamente, como a palmadas ou ficar em posição incômoda, foram gradativamente substituídos. Hoje, por exemplo, uma forma de castigo é mandar o aluno para a biblioteca. A biblioteca, que deveria ser um local para construir, serve, muitas vezes, de castigo. Erradicação do castigo As estratégias mundiais convergem para duas grandes medidas: uma, o avanço na legislação. Nesse sentido, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação brasileira avançou bastante. Outra medida é a questão da educação. A educação é fundamental na erradicação do castigo corporal. Esse é um trabalho difícil porque envolve mudanças de valores, de posturas. A criança não é um adulto em miniatura, ela tem uma lógica própria, uma visão de mundo própria. Não é fácil para os pais captarem essa visão de mundo. E qual a saída mais fácil? O castigo. Conseqüências psicológicas Pais carregados de estresse ou até depressivos têm mais propensão para praticar o castigo físico. Isso tem conseqüências psicológicas no futuro da criança. Aos 2 anos, as crianças que são punidas fisicamente têm maior probabilidade de se afastarem das mães do que aquelas que não sofrem castigo corporal. Crianças punidas fisicamente têm menos probabilidade de internalizar valores do que aquelas que não sofrem. São inúmeras as conseqüências. Inclusive, cognitivas. Dos fatores que impedem a aprendizagem, 80% são de fundo emocional. Por isso, a educação para a autoconfiança é fundamental para o país. Um país com população que tenha essa autoconfiança é muito mais criativo, produz muito mais, tem implicações diretas até na melhoria da competitividade. Educar para a autoconfiança é um investimento. Experiências internacionais A Suécia foi um dos países que conseguiram erradicar os castigos corporais. O que se fez foi uma notável combinação de reforma legislativa com a de comportamento. O que ocorreu lá foi uma história de cidadania, de lutas sociais e de educação ; de uma educação à serviço da construção de uma cidadania. Simultaneamente, isso foi incorporado pela legislação. Chegaram ao ponto de uma proibição legal para o castigo físico. E isso funciona. Não é possível transportar modelos para o Brasil, mas podemos colocá-los como inspiração. É como diz o Ortega y Gasset (filósofo espanhol): ;Nada deve impedir que a gente coloque o olhar no que faz o vizinho exemplar. Não para copiá-lo, mas para enfrentar o nosso próprio problema;. Auto-estima no Brasil O Brasil cresceu com sentimento de baixa auto-estima. Foi um dos últimos países a libertar os escravos. O Brasil deixou esse grande contingente à margem. Esse povo marginalizado continua excluído até hoje e cresceu com esse sentimento de inferioridade. Uma das grandes teses da educação hoje é a da inclusão. É pela educação que a criança, o adolescente, todos nós, adquirimos a nossa valorização, o nosso respeito. É a escola que faz isso. Por que você tem hoje um Pelé? Porque nessa área do esporte, da música, é em que o brasileiro, de uma maneira ou de outra, tem chances. Isso não depende de governos. Joga-se futebol em qualquer lugar, canta-se em qualquer lugar. No dia em que o Brasil der oportunidades para outras áreas mais cognitivas, o Brasil também vai ter pelés na ciência. Porque você cria espaços para a emergência da criatividade, para a diversidade. E a escola é um dos mais importante espaços, com todos seus defeitos. Conceito de educação Uma coisa que é preciso ser feita é rever o conceito de educação. Fala-se muito em educação. Mas o que de fato é educação? Não é um treinamento para a competitividade ou para dar lucro, para enriquecer. Educação também não é instrução. Hoje, você tem um discurso, de que o importante é aprender na escola, que a escola tem de ter foco na aprendizagem. A rigor, o foco tem de ser na educação. A aprendizagem é uma conseqüência disso. Educação é criar oportunidades para revelar a contribuição da pessoa ao mundo. Ou seja, criar condições para o acerto da sua identidade. Essa questão é muito importante. Criar condições para revelar as suas potencialidades. O cérebro de uma criança, quando nasce, é de uma capacidade de aprendizagem e educação fantástica. A escola, então, deve abrir espaços para essa criatividade. Muitas vezes, a escola, a família, massacram essa criatividade. Mas a escola deve ser cada vez mais essa instância de revelação de possibilidades. Professor que educa A escola tem que ter uma atenção muito grande com a criança e com o adolescente. Isso começa com o professor-educador. Ele tem de dominar seus conteúdos e ter o verdadeiro conceito de educação. Boa educação é formar uma pessoa mais solidária, mais tolerante, um cidadão mais digno, respeitador dos direitos dos outros. Esses valores precisam ser desenvolvidos. Isso é muito pouco discutido nas escolas. Hoje, você tem uma verdadeira corrida pelo conhecimento competititvo. Se você pensar bem, uma pessoa bem formada nessa direção, de fortalecimento de alguns ideais, de sua responsabilidade, de uma ética, essa pessoa fica em melhores condições de enfrentar o mundo competitivo, pois ela adquire mais confiança. Todo projeto que trate de reformulação das licenciaturas precisa agregar esse novo entendimento. É por isso que se fala muitas vezes não apenas em formação de professores, mas em formação de educadores. Construção de valores A autêntica internalização de valores não ocorre pelo castigo, mas pelo diálogo. Quando digo valores, não falo dos valores tradicionais, retrógrados. São valores da democracia, são valores da tolerância, de respeitar os outros, os pais, os valores nacionais, civilizatórios. E isso não é tarefa da família, é uma tarefa conjugada com a escola. Essa formação ética é extremamente importante. Isso não significa que, para formar um cidadão, ele não precisa dominar os conteúdos. Pelo contrário, quanto mais democratizado o conhecimento, tanto mais vamos nos aproximar de uma sociedade mais justa. Hoje, no Brasil, considerando as diferentes modalidades de ensino, há mais de 60 milhões de pessoas estudando. O que temos de fazer? Colocar nessa educação conteúdos, morais e éticos. Ouça podcast: Célio da Cunha, assessor especial da Unesco

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