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Arquivos de Guerra: Tufão na alma, dores no corpo

Bombardeios incessantes quase quebraram heróica resistência de pracinhas. Quarta parte da série de reportagens baseada em documentos secretos da FEB mostra que permanência de brasileiros no front era maior do que a dos soldados americanos

postado em 27/08/2008 09:22

15 de dezembro de 1944,
7TH Station hospital,
Livorno, Itália.


;Doutor, eu desejo voltar para a linha de fogo, mas não tenho no momento confiança em mim. Parece que, ao regressar e ouvir o primeiro tiro, passarei a cometer desatinos, não me responsabilizando pelo que possa acontecer. O desabafo foi de um soldado brasileiro ao major-médico Sady Cahen Fischer, que fez um relatório dramático a seus superiores mostrando que os nossos combatentes já estavam no limite de suas forças na tentativa da tomada de Monte Castelo. A resistência dos pracinhas estava sendo heróica, levando-se em conta a situação e o clima adversos, revela a quarta parte da série de reportagens baseada em documentos secretos da FEB.

Ao contrário das tropas americanas, os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) não tinham repouso e passavam até dois meses no campo de batalha. O mês de dezembro, quando aconteceu a última tentativa frustrada de tomar a região, foi o que levou mais pracinhas para o posto de neuropsiquiatria. Extremamente cansados, com problemas nervosos, ansiedade, medo e depressão. ;Parece-me que se trata, no caso concreto, de verdadeira estafa física e moral;, descreveu Sady para seu superior.

Forte, tranqüilo, o soldado Azevedo, 26 anos, não sofria de qualquer problema de saúde antes de ir à guerra. Artilheiro, chegou à Itália e logo foi para as frentes de combate. Até então, nada sofria. Mas quando seu grupo mudou de posição ele não era mais o mesmo. ;Um tufão se levantou na alma daquele artilheiro e as coisas mudaram de rumo;, constatou o capitão Mirandolino Caldas, chefe do setor de neuropsiquiatria. A notícia de que os bombardeiros alemães estavam próximos transformaram a vida de Azevedo. O soldado falava em uma ;granada do tempo; que lhe perseguia e teve que ser internado.

;Levante-se;, gritou o capitão Cabral ao soldado Vieira, que fora levado ao hospital queixando-se de paralisia nas pernas. Sem que sua ordem fosse cumprida, o oficial novamente apelou. ;Levante-se, levante-se, levante-se.; Aos poucos, Vieira tentava se manter em pé, escorando-se em algum móvel. O diagnóstico era hemiplegia, causada pelo cansaço dos campos de batalha. Mota, 23 anos, caiu bruscamente dentro de um caminhão à caminho do front. Nunca teve nenhum tipo de doença. ;Tenho vontade de gritar, mas não posso. Estico as pernas e os braços, ouço tudo que falam perto de mim, mas não posso responder;, contou Mota. Seu primeiro ataque aconteceu quando soube que iria para a guerra.

;A resistência física e moral tem, como tudo na vida, um limite máximo de tolerância. Rompida essa resistência, esse equilíbrio, surgem distúrbios vários, independente do fator vontade. Tenho a impressão que o nosso Exército está carecendo de um repouso absoluto, feito bem longe do front, onde durante este período deve desaparecer por completo todo e qualquer indício de luta;, recomendou Sady. ;Parece ser a melhor medida que se impõe, com o fim de evitar graves conseqüências, que na minha opinião não tardarão a desencadear;, acrescentou.

Sofrimento secreto
A missão perigosa e delicada de reconhecimento levou o cabo Moreira, de 24 anos, quase à loucura. Falava palavras desconexas, sempre intercaladas por gritos de dor. ;Parecia estar despertando de um sono profundo, ou saindo de um estado de choque;, relatou o capitão Cabral. Onofre, um cabo paulista de 23 anos, também sentia muitas dores de cabeça, o que era comum entre os soldados que estavam nas frentes de batalha. Chegou a perder os sentidos algumas vezes, em conseqüência dos freqüentes ataques do inimigo sobre sua posição. ;Tratava-se, evidentemente, de mais um estafado em crise ansiosa;, diagnosticou Cabral.

Os relatórios do serviço médico da FEB eram todos secretos ou reservados, e sua circulação era restrita para evitar que chegasse, de alguma forma, às mãos dos alemães, que mantinham Monte Castelo sob seu domínio. Com isso, mantinha-se em segredo a situação debilitada das tropas brasileiras. ;A psicologia do momento, onde tudo conspira contra o combatente (desconforto, noites mal dormidas, atenção permanente pelas necessidades do momento, mal alimentados, molhados, etc.) nos ensina que os sinais supra citados podem se fazer sentir a qualquer momento e que compete aos chefes, aos nossos superiores, que isso aconteça;, alertou Sady.

Nos relatórios, os médicos observam que, depois do período de tratamento ; raramente mais que uma semana ;, os combatentes eram outras pessoas. Azevedo, Vieira, Mota, Moreira e Onofre voltaram para o campo de batalha. ;O paciente, que a princípio não podia sequer ouvir falar na sua volta à artilharia, foi melhorando gradativamente. E no dia em que lhe demos alta não teve a menor hesitação em partir;, contou Cabral, referindo-se a Azevedo. Depois de ouvir uma preleção patriótica dos médicos, ele chorou e se despediu dizendo que haveria de cumprir com seu dever. Dois meses depois, os cinco estavam entre os pracinhas da FEB que tomaram Monte Castelo.

A frase

"Tenho vontade de gritar, mas não posso. Estico as pernas e os braços, ouço tudo que falam perto de mim, mas não posso responder"
Soldado Mota, acamado com hemiplegia por absoluto cansaço de guerra

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