postado em 05/10/2008 09:24
Sentadas em roda, na entrada de um posto de saúde de São Sebastião, elas iniciam o ritual que repetem todas as manhãs de quarta-feira, sem falta. Estão ali para conversar, desabafar, trocar experiências. Antes, porém, a coordenadora do grupo, Marilene Barbosa, lembra as regras a serem respeitadas: ouvir em silêncio, não julgar o que a outra pessoa diz, não dar conselhos, falar sempre de si e não da outra e, sempre que possível, citar canções, versos e provérbios que se relacionem com o assunto discutido. Todas de acordo, é iniciada mais uma sessão de terapia comunitária, técnica surgida há 21 anos no Ceará e que, desde então, se espalhou por todo o país e chegou à Europa.Definida por seu criador, o psiquiatra da Universidade Federal do Ceará (UFC) Adalberto Barreto, como ;um espaço de acolhimento e escuta;, a terapia comunitária acaba de ser abraçada pelo governo federal como parte da estratégia de atenção básica à saúde. Por meio de um convênio entre a UFC e o Ministério da Saúde, 1,1 mil profissionais das equipes do Programa Saúde da Família (PSF) serão capacitados, até março de 2009, para aplicar a metodologia em comunidades carentes de todo o país ; exatamente o público para a qual a terapia foi desenvolvida.
Nas sessões, o terapeuta comunitário, ou facilitador, estimula os participantes a contar os problemas que os afligem. Depois das exposições, cada pessoa do grupo vota em um dos problemas apresentados. Aquele que gerar mais interesse será debatido. Além da pessoa que trouxe a questão, falam também aqueles que já passaram por uma situação parecida e podem dizer como lidaram com ela. Ao final, ocorre o ritual de agregação, quando, de mãos dadas, todos dizem o que estão levando da experiência vivida. Muitos grupos utilizam canções, que servem para encorajar os participantes a enfrentar seus problemas.
;Não se trata de psicoterapia, mas de uma rede solidária de apoio. A comunidade tem seus problemas, mas também tem as soluções;, resume a psiquiatra Maria Henriqueta Camarotti, uma das diretoras do Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal (Mismec-DF), primeiro pólo a formar grupos de terapia comunitária fora do Ceará, desde 2001. Hoje, graças à entidade, cerca de 40 rodas funcionam no DF.
Prevenção
A metodologia tem atraído a atenção de médicos e psicólogos de todo o país, que se esforçam para multiplicar a experiência. Atualmente, são 36 pólos de formação nas 27 unidades da federação, que já treinaram 12,5 mil terapeutas comunitários ; apenas no Pólo Quatro Varas, em Fortaleza, são atendidos, em média, 3 mil pacientes por mês (cerca de 500 mil atendimentos desde 1986). Há seis anos, especialistas brasileiros têm ajudado na disseminação da técnica pela Europa. Já foram criados três pólos no continente ; dois na França e um na Suíça.
Ampliar a oferta no país é o principal objetivo do convênio assinado pelo Ministério da Saúde com a UFC, que dá prioridade a municípios com cobertura de pelo menos 30% do Programa Saúde da Família ; e, por isso, não inclui o Distrito Federal (hoje com apenas 6,51% da população atendida pelos agentes comunitários de saúde). ;Nossa intenção é que a formação dos agentes comunitários não se encerre nesse primeiro momento, que seja um trabalho permanente;, explica a coordenadora da Política de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS), Carmen de Simoni. ;É um instrumento para que o agente melhore o trabalho que presta à comunidade;, completa.
Atualmente, não só agentes de saúde atuam como facilitadores. Os pólos espalhados pelo país já capacitaram líderes comunitários, enfermeiros, agentes pastorais, psicólogos e médicos, entre outros voluntários. No grupo, reina a convicção de que o método é um trabalho preventivo de saúde. De fato, um estudo de impacto realizado pela UFC em 2005 e 2006, com 12 mil questionários em 12 estados brasileiros, mostrou que 88,5% das demandas foram resolvidas dentro da roda de terapia. Somente 11,5% das pessoas precisaram ser encaminhadas para os serviços de saúde. Os dados mostram ainda que os temas mais freqüentes são estresse e emoções negativas (26%), conflitos familiares (19,7%), dependência de álcool e outras drogas (11,7%) e questões ligadas ao trabalho (9,6%).
Voluntários
Em São Sebastião, as demandas são muito parecidas com as apontadas no levantamento. ;O que a gente mais discute são problemas como a falta de emprego e a violência doméstica;, diz Marilene, que divide seu tempo entre o trabalho como secretária na Câmara dos Deputados e a coordenação de grupos na cidade. Ela se tornou uma facilitadora depois de se encantar com os benefícios da terapia, ao participar de um grupo no Paranoá, onde mora. ;Eu era uma pessoa fechada e fui ganhando confiança, me sentindo mais segura;, lembra.
Hoje, são seis grupos em São Sebastião, que contam com a presença assídua de mulheres como a diarista Francisca Maria de Sousa, 41 anos. Curiosa, como ela mesma se define, Francisca logo quis saber do que se tratava o tal grupo que estava sendo criado perto de sua casa. Participando das reuniões, percebeu que não tinha tido até então a chance de lidar com a dor de duas perdas que sofreu ; as mortes da mãe, em 1995, e do primeiro filho, em 2000. ;Mesmo tendo meu marido, que conversa muito comigo, percebi aqui que ainda sentia uma angústia muito grande;, conta.
Hoje, Francisca se diz feliz. A segunda filha, Laura, já completou 6 anos, e o casamento com Osmar Mendonça, 38, vai muito bem. E quando surge algum problema, ela sabe onde poderá desabafar e buscar uma saída, com a coragem que aumenta a cada dia. ;Quando queremos alguma coisa, temos que trabalhar por ela;, ensina.