postado em 09/11/2008 09:48
Barracas de camping, abrigos improvisados de tábua, lonas e plásticos que fazem as vezes de casa são os lares de 270 mil brasileiros. O número corresponde a cerca de 0,14% da população. Parece pouco, mas é o dobro do verificado há 15 anos. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007, mostrou que o percentual de pessoas que vivem em moradias improvisadas (sem-teto) em relação ao total de habitantes está avançando no país.
;Não foi possível deter o crescimento da população residente em domicílios improvisados nem o número de pessoas residentes em favelas e assemelhados;, diz o estudo do Ipea, organizado pela pesquisadora Maria da Piedade Morais.;Aproximadamente 34,5% da população urbana ainda vive em condições de moradia inadequadas. Retrato da desigualdade brasileira: enquanto os 10% mais ricos detêm 75% da riqueza nacional, um a cada três brasileiros das cidades não tem condições dignas de moradia;, informa o documento.
Segundo o jornalista Alderon Costa, que há duas décadas trabalha com a população sem-teto e é presidente da Associação Rede Rua, o fenômeno não está ligado à migração interestadual. ;Hoje, o fluxo migratório é muito pequeno. O que ocorre é migração de classe;, constata. De fato, os últimos levantamentos da Pnad têm apontado diminuição nas movimentações entre estados e regiões. Uma regressão de 30%, em média, nas duas últimas décadas. Ao mesmo tempo, ocorre o que os especialistas chamam de ;periferização;, com o deslocamento de habitantes do centro da cidade para bairros satélites, onde nem sempre as condições de moradia são adequadas.
;Nos últimos anos, houve melhorias no sentido de mais pessoas terem carteira assinada. O problema é que os salários são muito baixos, próximos aos de condição de subemprego. Quem ganha até três salários mínimos não tem como comprar nem alugar uma casa. Com o boom imobiliário, o custo da terra elevou-se muito, tornando a moradia elitizada;, critica Benedito Roberto, dirigente nacional da Central de Movimentos Populares. O estudo do Ipea mostrou que 5,4 milhões de brasileiros moradores das áreas urbanas comprometem mais de 30% da renda com aluguel. De acordo com a análise dos pesquisadores, desde 1992, há uma tendência crescente no preço dos aluguéis.
Comprar um imóvel é mais difícil ainda. ;Existem várias linhas de crédito, mas, por outro lado, os recursos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) não chegam às famílias de renda muito baixa, que é onde está o déficit habitacional;, diz Benedito. Estima-se que, no país, faltem pelo menos 7 milhões de moradias.
;O nosso objetivo é trabalhar com esse déficit habitacional, de domicílios improvisados, assentamentos precários e coabitações. O Plano Nacional de Habitação veio para beneficiar essa parte da população que não tem capacidade de assumir uma prestação. São pessoas que precisam de casa e, ao mesmo tempo, do apoio de uma rede de proteção social, o que já tem sido oferecido por programas como o Bolsa Família;, explica a secretária nacional de Habitação, Inês da Silva Magalhães.
Elaborado no final de 2007, o plano tem diversas ações. Entre elas, o financiamento de casas para pessoas com renda de até R$ 1.050 mensais, residentes de assentamentos considerados precários. O repasse do governo federal é de até R$ 11 mil por família para a compra de terrenos, de R$ 23 mil para a aquisição de casa pronta em capitais e regiões metropolitanas e de R$ 18 mil nos demais municípios. Os estados, municípios e o Distrito Federal, porém, precisam co-financiar as habitações.
Lentidão
;Temos consciência de que se iniciou um processo de política pública nacional voltado às necessidades da moradia popular, mas é um movimento ainda lento. E um grande entrave é alcançar a consonância nas três esferas da Federação;, aponta Donizete Fernandes de Oliveira, coordenador da União Nacional de Moradias Populares. Segundo ele, também faltam recursos. Uma das soluções seria a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada em agosto no Congresso. Pelo texto, assim como ocorre na educação e na saúde, o governo vincularia um percentual fixo do orçamento, no caso 2%, para a moradia de interesse social. ;Hoje, com 0,6% do orçamento, a habitação recebe R$ 2 bilhões. Com a vinculação, conseguiríamos entre R$ 7 bilhões e R$ 8 bilhões por ano;, explica.
Alheio às discussões sobre déficit habitacional, financiamento e vinculações orçamentárias, o agricultor Amadeo dos Santos, 26 anos, só quer saber que fim levaram os primeiros tijolos que comprou para, um dia, construir sua casa. Morador de um barraco feito com tábuas em um terreno do povoado da Fercal, ele passa o dia na lavoura fazendo bicos para proprietários de terras. Semi-analfabeto, entende tudo sobre bois, porcos, galinhas e sabe na ponta da língua o nome das árvores do cerrado. Devido à falta de instrução, no entanto, não consegue emprego com carteira assinada.
A casa de Amadeo é um amontoado de tábuas com chão de terra batida. O fogão improvisado é a lenha. Não há energia elétrica nem banheiro. A geladeira velha aguarda por um ;gato; para poder funcionar. No quarto ; o barraco tem dois cômodos sem divisória ;, as lascas de madeira começaram a cair, permitindo que qualquer um entre no lugar. ;Eu comprei uns tijolos, mas quando estou no pasto, entra gente aqui e pega tudo. Isso aqui é uma vergonha, não posso nem chamar de casa;, lamenta.
Com o boom imobiliário, o custo da terra elevou-se muito, tornando a moradia elitizada
Benedito Roberto, dirigente nacional da Central de Movimentos Populares
O número
34,5 % da população urbana no Brasil ainda vive em condições de moradia inadequadas
Quando a rua é a única opção
Marcelo Mathias Lima, 30 anos, exibe a carteira de trabalho já bastante gasta. O último carimbo data de 16 de junho de 2006, quando perdeu o emprego na Fazenda Campo Aberto, zona rural de Barreiras (BA). Em Brasília desde então, conseguiu bicos como soldador, mas nunca mais teve ficha em empresa. ;Não consigo arrumar serviço;, lamenta. Sem renda fixa nem perspectiva de emprego, ele arrumou abrigo debaixo do Viaduto Ayrton Senna, na estrada Epia. Divide uma barraca de camping com a companheira, Kátia Araújo, 35 anos.
A mulher também está desempregada. Sempre trabalhou como faxineira, mas, há dois anos, sofreu um acidente doméstico. Estava cozinhando no fogão a lenha, em Santa Maria, quando a garrafa de álcool caiu no fogo. Kátia ficou seis meses internada no Hospital Regional da Asa Norte, com a metade superior do corpo tomada por queimaduras. Por causa da aparência, acredita, não consegue mais emprego. ;As pessoas têm preconceito. Quando cheguei aqui (no viaduto), tive medo de me matarem, de não suportar, de não ter o que comer nem vestir. Até porque não quero cair na prática de manguear;, diz, referindo-se à gíria usada pelos moradores de rua para definir a mendicância.
O casal é um dos 32 mil adultos brasileiros que vivem nas ruas, de acordo com levantamento do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 23 capitais e 48 cidades com mais de 300 mil habitantes. A pesquisa foi feita para subsidiar o trabalho do grupo interministerial coordenado pelo MDS, que elaborou o projeto de uma política nacional de assistência ao morador de rua. O texto encontra-se no site do ministério, para consulta pública.
De acordo com a pesquisa, a população de rua não é composta por mendigos. Apenas 16% sobrevivem de donativos. Cinqüenta e novo por cento têm profissão, embora 48% nunca tenham tido carteira de trabalho assinada. ;Para atender essa população, que se encontra em extrema vulnerabilidade, é necessário um conjunto de ações em várias áreas, como assistência social, saúde e trabalho;, diz Solange Martins, coordenadora-geral da Proteção Social Especial do MDS.
O jornalista Alderon Costa, coordenador da Associação Rede Rua, afirma que os números sobre a população de rua são incertos. Somente em São Paulo, a estimativa é de 15 mil pessoas, sendo que, em 1990, não passavam de 3 mil. Alderon conta que o perfil do morador de rua está mudando. ;O que temos visto são famílias inteiras indo morar na rua. Uma coisa que não ocorria com tanta freqüência cinco anos atrás;, afirma. Para ele, as políticas devem ser preventivas, e não apenas de assistência. ;Depois que a pessoa cai na rua, é muito difícil tirá-la. Se houvesse uma medida preventiva, o Estado economizaria, as pessoas não sofreriam tanto e a cidade não teria o incômodo de tentar criar políticas higienistas que tiram os moradores de rua à força, como vem ocorrendo no centro de São Paulo;, critica. (PO)