postado em 09/11/2008 09:50
São Paulo ; Ainda são 5h15 e Etelvino de Oliveira, 73 anos, acabou de acordar. Sonolento e faminto, ele põe a mão numa sacola plástica que está na cabeceira da cama e apanha um pão que ganhou no dia anterior, enquanto catava papelão nas ruas do centro de São Paulo. E come. Em seguida, anda quase meio quilômetro até o centro de apoio mantido por uma organização não-governamental. Lá, ele toma uma ducha pontualmente às 7h. Esse é o único banho do dia. Na volta, ele acorda a mulher, Maria das Graças dos Santos, 68, que faz o mesmo ritual.
Seu Etelvino e dona Maria não têm endereço, mas podem ser encontrados diariamente numa das avenidas mais tradicionais da capital paulista, a São João, bem embaixo do Elevado Presidente Costa e Silva, conhecido como Minhocão. Como eles, segundo estatísticas da Secretaria de Habitação de São Paulo, cerca de 5% da população vive nas ruas da maior cidade da América Latina.
Os sem-teto de São Paulo passam despercebidos aos olhos da população, que vive num frenético corre-corre típico de cidade grande. ;Eu moro na rua porque empobreci. Tenho dois filhos que trabalham como agricultores no Peru. Ganho R$ 400 por mês de aposentadoria e, com esse dinheiro, o único lugar que dá para eu viver é aqui;, conta Etelvino, apontando para os dois metros quadrados de calçada que escolheu para morar. Ele divide o perímetro com outros 16 sem-teto. Na verdade, eles se juntam em grupos para se proteger.
Todos as pessoas que moram embaixo do Minhocão trabalham. Eles catam papelão, latinhas, atuam como flanelinha, faxineiro e até como garçom. ;Nós temos trabalho, só não temos casa;, diz o ajudante de pedreiro Osmar Cardoso Sousa, 37 anos. Seu Etelvino diz que Osmar é o sem-teto mais inteligente do Minhocão. ;Os catadores pegam só coisas para revender. Osmar, não. Ele coleciona livros e revistas que encontra nas latas de lixo e lê tudo. Eu acho até que ele nem dorme. Às 3h da manhã, tem sempre uma vela acesa na barraquinha dele;, arrisca o colega de rua.
Bem ao lado da cama de Etelvino, Raimundo José Santos, 27 anos, e Antônia Morais, 30, dormem às 16h30. O descanso é merecido, já que os dois trabalharam pesado das 6h às 14h. No dia-a-dia, Ray, como Raimundo gosta de ser chamado, assume o lugar de um cavalo e puxa com os próprios braços uma carroça que carrega de tudo. Antônia e mais três mulheres e uma criança de 12 anos ajudam a catar coisas que encontram pelo lixo e que tenham algum valor de venda. ;A gente pega de tudo. Hoje, achamos vasos de planta, uma cama, uma estante desmontada e várias peças de roupa;, enumera Antônia. No final da jornada pelos bairros da Barra Funda e Centro, a carroça que Ray puxa com tração humana já pesa quase 200kg. Depois de almoçarem, eles bebem cachaça para relaxar e dormem até o dia seguinte.
Ameaça dos ônibus
A barraca dos sem-teto que dormem sob o Minhocão fica a menos de 40cm do asfalto por onde passam centenas de ônibus, diariamente. Quando Ray está deitado, por exemplo, ele não pode esticar os braços para o alto, pois bem pertinho da cabeceira da cama passam os pneus dos ônibus, já que a faixa mais próxima da calçada é reservada para os corredores dos coletivos. ;Quando chove, os ônibus passam e jogam água na gente. Quem não conseguir lonas de plástico, dorme ensopado;, ressalta o carroceiro.
A assistente social Renata Sarmento, da Universidade Federal de São Paulo, desenvolve há cinco anos um trabalho com os moradores de rua de São Paulo. Ela conta que começou a se dedicar ao tema quando era funcionária da prefeitura e continuou mesmo depois que largou a administração pública e voltou para a sala de aula. ;Consegui fazer uma turma de voluntários e hoje damos assistência a pelo menos 300 deles.; Ela observa que a maioria é muito falante e delira contando que já foi rico e que atuou em guerras. ;Muitos deles estão cada vez mais presos às drogas. Consomem álcool, maconha, crack e loló, um preparado químico perigoso, à base de solvente;, relaciona.
À noite, quando estão se preparando para dormir, os sem-teto que moram sob um elevado da Avenida Faria Lima, esquina com a Paulista, falam sem parar. Riem alto e parecem bem felizes. Engano. ;Vou te explicar uma coisa: A rua é como uma teia. Parece que você está livre, mas você está preso. Eu morava com uma senhora que me pegou em casa para me criar. Mas eu só apanhava. Aquela moça ali saiu de casa porque não tinha comida. Essa é a história de cada um de nós. Como é que você ainda vem aqui perguntar se somos felizes?;, questiona Régis Lucena, 32 anos, catador de papel.
Prédios invadidos
Maria com a filha: ;Para quem morava na rua, aqui é o paraíso;
Quando se fala em sem-teto, o maior desafio do governo e da prefeitura de São Paulo são as pessoas que não têm casa e moram em condições precárias, como viadutos e prédios abandonados ou invadidos. Pelo menos cinco edifícios estão nessa situação só na Grande São Paulo. Segundo dados do governo, cerca de 2 milhões de pessoas vivem precariamente em áreas de manancial e o déficit habitacional é de 600 mil moradias só na capital.
No Natal do ano passado, cerca de 1,2 mil famílias invadiram o Edifício Tietê, na Rua Florêncio de Breu, bem ao lado do Mosteiro de São Bento. Como o prédio era formado por salas comerciais, os 12 andares de 300 metros quadrados, cada, não têm divisórias. Os moradores foram obrigados a construir paredes de madeirite, transformando o local num imenso cortiço. De cada família, são cobrados R$ 60 por mês. Com esse dinheiro, a coordenação paga a conta de luz (em média R$ 2,2 mil), água (R$ 1,2 mil) e realiza pequenos consertos.
No cortiço, vive Maria de Fátima Ferreira, 42 anos. Ela veio de Juazeiro do Norte (CE) há quatro anos em busca de uma vida melhor. A mulher não tem reclamações a fazer. Mas observa que não há nenhuma privacidade, que o banheiro que dispõe é usado por mais 37 pessoas e que falta higiene na área comum. ;Para quem morava na rua, aqui é o paraíso;, conta. (UC)