Brasil

Pesquisadora analisa como crianças expostas a uma rotina de violência se comportam

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postado em 06/12/2008 09:30
É uma dor pior do que a do tapa, do soco, do pontapé. ;Ele chora muito quando vê a violência, fica desesperado, querendo ajudar. Entra no meio de nós dois e apanha junto. O pai não pára de bater porque o filho pede. Ele nem vê o filho, só xinga o menino e continua batendo e espancando eu (sic) e o filho. Meu filho sofre muito com isso;, conta Maria*, 42 anos. Ela fala de Rafael, 14, testemunha das constantes agressões que a mãe sofre dentro de casa. Um hábito com o qual o menino e seus 11 irmãos não conseguem se acostumar. ;São crianças e adolescentes que, nesse momento, experimentam sentimento de impotência, de imobilidade e surpresa diante do medo que sentem ao presenciar o que ocorre com a mãe;, diz a psicóloga Mírian Sagim, autora de uma tese de doutorado apresentada na Universidade de São Paulo (USP) sobre violência doméstica. Ao contrário de outros estudos que se concentram na agressões sofridas por crianças dentro de casa, a pesquisadora, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi a campo para descobrir como os pequenos se comportam não só quando são vítimas dos pais e das mães, mas também como testemunhas da violência intrafamiliar. Mais do que pela própria pele, temem pela família. ;Elas sofrem mais quando vêm os pais brigando do que propriamente quando apanham;, constatou a psicóloga. ;Apanhar dói. Mas ver minha mãe levar porrada todo dia dói mais;, confessou a ela um menino de 15 anos. Durante dois anos, Mírian vivenciou o cotidiano de mais de 300 pessoas. Aprofundou-se nas histórias de 77 crianças com idades entre 6 e 16 anos. Viu e ouviu cenas e relatos impressionantes ; meninos e meninas com cicatrizes por todo o corpo, e frases do tipo: ;Minha irmã avançou no pai com a foice nas costas dele, não matou, mas machucou, e aí o pai tentou matar ela (sic), enforcando. O pai foi preso, por tentar matar a filha. Minha irmã tinha 13 anos e o pai ia abusar dela. É por isso que se ele bater na mãe e se eu vê (sic), mato ele e me mato depois;. ;Esses adolescentes são muito pequenos para terem que vivenciar esse tipo de problema e passar por essa experiência de vida;, diz a especialista. Embora não existam, segundo ela, pesquisas sobre as conseqüências futuras para a vida de crianças que observam as mães apanharem em casa, ela acredita que o testemunho dificilmente passará em branco. ;A presença da violência deixará a marca da insegurança e do medo;, diz. Entrevistas As crianças e os adolescentes que participaram do estudo passaram por entrevistas e por testes nos quais viam desenhos e os descreviam para a psicóloga. Apesar de vivenciarem um ambiente de violência, quando tiveram de dizer o que, para eles, significava a palavra família, 77,9% a relacionaram a atributos positivos, como ;legal;, ;bom;, ;boa;, ;muito boa;, ;feliz; e ;muito importante;. Cinqüenta e nove por cento disseram que gostariam de ter uma família feliz e 37% afirmaram que gostariam de viver numa casa onde não houvesse brigas, discussões e violência intrafamiliar. A pesquisadora também pediu para que completassem a frase: ;Sinto-me bem em casa quando%u2026;. Sessenta e oito por cento das crianças responderam que o sentimento vem à tona quando estão livres e não passam por constrangimentos. Já 71,6% dos entrevistados disseram que se sentem mal em casa quando há discussões e violência. Setenta e oito por cento confessaram que desejavam mudanças no comportamento dos pais. ;Se fossem bons, não bebessem, não batessem, não tivesse briga, que trabalhasse, não batesse na mãe e em nós (sic); foram algumas das respostas. Vítimas Ao mesmo tempo em que sofrem testemunhando agressões contra outros membros da família, as crianças e os adolescentes entrevistados pela psicóloga também relataram serem eles mesmos vítimas de espancamentos, tanto por parte de pais e padrastos quanto das próprias mães, que tentam proteger. ;A vida dessas crianças e adolescentes, desde muito cedo, está permeada por contatos com polícia, hospital, por ver a mãe machucada ou ferida pelas brigas e cenas de violência. A interferência dos filhos nessa situação coloca a vida dos mesmos em mais um cenário de risco;, constata Mírian Sagim. Nos relatos feitos à psicóloga, os pequenos apontaram a bebida como principal fator que desencadeia a fúria dos pais. ;As crianças e os adolescentes percebem a importância do álcool nos episódios de violência e, por essa razão, quando mencionam o que gostariam que ocorresse em relação às mudanças em sua casa, a ausência de bebida aparece em primeiro lugar;, diz a especialista. Crianças contaram que apanham porque pedem comida, porque estão brincando ou ;fazendo coisa errada;, conforme relataram. ;Muitas se sentem culpadas pela situação. Acham que mereceram porque estão com fome e não há comida, quebraram um prato, chegaram atrasados em casa;, diz Mírian. A psicóloga, porém, surpreendeu-se com o fato de que, embora nos momentos nos quais falam sobre os castigos mostrem raiva dos pais, as crianças temem ficar longe de abrigos. ;Elas querem viver com suas famílias. Apanham, sofrem quando vêm as brigas, mas sentem muito carinho pelos pais. Ou seja, o vínculo familiar ainda existe.; * Os nomes são fictícios a pedido da pesquisadora Cotidiano violento MÃE ;Minha vida só tem tristeza, foi assim desde cedo. Só apanho, trabalho, não tenho nada. Bato nos filhos pra descontar as mágoas da vida, e bato muito. Às vezes, porque estou com raiva, bato neles. Desconto no meus filhos as tristezas da vida; FILHO ;Apanho todo dia. Quebro um copo e minha mãe bate tanto que machuca eu (sic) toda. Se abrir a boca apanho. Eu nem sei porque mais apanho. Já fui pro hospital muitas vezes. O dia que não apanho, sou feliz; Educação pela brutalidade Uma das principais conseqüências da agressão intrafamiliar é a formação do ciclo da violência. ;Observamos a repetição da história de vida dos agressores. Primeiro porque aprendem que aquela é a forma correta de educar, porque não tiveram outra referência. Segundo, porque podem ficar traumatizados;, diz a assistente social Célia Muiños Garcia, que trabalha na Fundação Iniciativa, de Curitiba, com crianças encaminhadas pela Justiça depois de abusos físicos ou sexuais. ;Quando a família é autoritária, há a tendência da repetição. É o aprendizado da violência. A criança aprende a se relacionar daquela forma, vê os pais aos tapas e acha que essa é a solução. Então adota esse padrão para enfrentar os conflitos;, diz Vicente Faleiros, assistente social, doutor em sociologia e professor da Universidade de Brasília (UnB). Autor de várias publicações sobre violência, Faleiros diz que uma das grandes dificuldades para enfrentar o problema é que a agressão doméstica é silenciosa. ;A vantagem é do mais forte, por isso as mulheres têm medo de denunciar;, diz. ;A violência familiar é caracterizada por um triângulo. Há o momento de tensão, o de violência e o de reparação. Na hora da reparação, a vítima acha que o agressor vai melhorar. Mas não melhora;, diz. (PO)

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