Jornal Correio Braziliense

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Estudo inédito liga o álcool à violência doméstica

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;Meu marido é ótimo, mas quando bebe vira outra pessoa.; A frase é velha conhecida de quem trabalha com mulheres vítimas de violência doméstica. Frequente na literatura médica, a combinação álcool e agressão foi constatada estatisticamente em uma dissertação de mestrado inédita da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O psicólogo Arilton Martins Fonseca pesquisou 7.939 domicílios brasileiros em 108 cidades com mais de 200 mil habitantes, incluindo o Distrito Federal. A conclusão: em 34,9% dos lares foram constatados casos de agressão, sendo que na metade dos casos, houve envolvimento de bebida. ;À medida que rebaixa o senso crítico, o álcool potencializa a agressividade;, diz Fonseca. A pesquisa provou que o estado de embriaguez não só favorece mais a ocorrência de atos violentos dentro de casa, como faz com que eles se repitam com maior frequência. Nas casas onde houve registros de agressão contra a mulher quando o homem estava sóbrio, o número de episódios foi menor (veja quadro). ;A diferença no tempo da duração da violência é gigante e foi um dos fatores que mais me chamaram a atenção;, afirma o psicólogo. Porém, ele deixa claro que a culpa da violência doméstica não é da bebida simplesmente. ;Esse comportamento é inerente ao agressor.; A mesma opinião tem a subsecretária da Secretaria Especial de Políticas para a Mulheres, Aparecida Gonçalves. Segundo ela, se o álcool fosse o responsável pela violência, o agressor bateria em qualquer pessoa. No entanto, ele foca a violência na mulher e nos filhos (leia entrevista). De acordo com o autor do estudo, o álcool é uma droga bifásica. A princípio, causa desinibição, que vem seguida pela depressão do sistema nervoso central. Nessa segunda etapa, a pessoa alcoolizada fica sonolenta e com os reflexos lentos. ;O homem aproveita a primeira fase, quando está menos crítico e mais desinibido, para resolver de forma violenta coisas que estão engasgadas. Na verdade, ele usa o álcool como desculpa;, diz. O pior é que a maioria das vítimas aceita a desculpa. ;A tendência da mulher é minimizar a agressão por causa da bebida. Quando existe o álcool, está presente o mecanismo do perdão;, constata. Inferno Mesmo tendo sido vítima de violência diversas vezes, Mariana*, 24 anos, demorou para abandonar o antigo companheiro. Há nove, ela se casou, pouco tempo depois de conhecer o marido. Mãe duas crianças, de 9 meses e 4 anos, ela morava na zona rural e, há cinco meses, viu sua vida se transformar em um inferno quando o companheiro resolveu abrir um bar. ;Ele começou a chegar em casa agressivo, me espancando. E eu sempre com dó do camarada;, conta, sem conseguir explicar o motivo. ;Mas o que mais doeu foi a traição. Só quando peguei os dois no ;flagra; eu criei coragem e o denunciei;, lembra. Com medo da reação do companheiro, ela foi orientada por uma advogada a procurar ajuda. Hoje, vive em um abrigo mantido pelo Governo do Distrito Federal. Por vergonha, medo ou dependência econômica, poucas mulheres denunciam os parceiros. Na pesquisa de Fonseca, constatou-se que 86,4% das vítimas não buscam qualquer tipo de ajuda, seja de médicos ou de policiais. Moradora do abrigo de Brasília desde dezembro passado, Vanda, 24 anos, confessa que só não denunciou o companheiro antes por medo de não ter como se sustentar. Ciumento, ele fazia escândalos todas as vezes que bebia em frente às casas onde ela fazia faxina. ;Acabei perdendo todos os empregos;, conta. O namoro começou três anos atrás. Dois meses depois que o casal passou a morar junto, Vanda percebeu que o parceiro bebia além da conta. Ela foi espancada várias vezes e submetida a sessões de tortura. Era amarrada na cama com fios de telefone, tinha a boca vedada e apanhava duramente do companheiro. Por várias vezes, foi ameaçada de morte. ;Ele dizia que tinha que me matar porque me amava.; Em 18 de dezembro passado, ela resolveu acabar com o sofrimento. Depois de uma discussão, ele ameaçou a filha mais velha dela, fruto do primeiro casamento. A criança, de 4 anos, sofre de epilepsia e já havia apanhado antes do agressor. ;Quando ele foi pra cima da minha filha com o facão, quebrei um rodo nas costas dele e conseguimos escapar;, relata. Situações como essa poderiam ser evitadas, segundo o Fonseca, se as equipes do Programa Saúde da Família fossem capacitadas para identificar e encaminhar casos de violência doméstica. ;A equipe acaba estabelecendo um vínculo de confiança. As pessoas se abrem, conversam;, afirma. De acordo com Aparecida Gonçalves, esse trabalho já começou a ser feito. Nem todos os estados e municípios, porém, aderiram ao projeto ainda. * Nomes fictícios para proteger a identidade das vítimas Leia mais na edição impressa do Correio deste domingo