Seis décadas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as mulheres brasileiras ainda são vítimas de violações nos campos do trabalho, da reprodução e da privação de liberdade. Pela primeira vez, em nove anos de publicação, o relatório Direitos Humanos no Brasil, elaborado por diversas organizações não-governamentais, aborda as condições da população carcerária feminina, além de dedicar outros dois artigos específicos sobre a discriminação sofrida pela mulher no país. Um dos casos mais emblemáticos, defende a advogada Beatriz Galli, consultora no Brasil da Ipas, organização internacional que trabalha com a garantia dos direitos reprodutivos, é o da ameaça de processo criminal contra 10 mil mulheres que fizeram aborto no Mato Grosso do Sul. Em abril de 2007, a mídia denunciou a existência de uma clínica que fazia a interrupção da gravidez de forma clandestina. O Ministério Público do estado denunciou a proprietária, as funcionárias e, durante o mandado de busca e apreensão, foram recolhidos 9.862 prontuários de mulheres que se submeteram ao procedimento. Com base nos documentos, elas foram identificadas e investigadas. Desde o ano passado, 2 mil foram processadas e 26 cumprem pena alternativa em creches da região. ;Nunca vi uma perseguição neste grau;, diz Beatriz Galli, para quem o aborto deve ser tratado como problema de saúde pública. Ela afirma que o processo no Mato Grosso do Sul resultou na violação do direito à privacidade e do sigilo médico. Apenas um perito indicado pela Justiça pode manusear prontuários. Porém, os apreendidos na clínica de Campo Grande foram manipulados por policiais não autorizados, além de divulgados à imprensa. ;Esse caso pode, inclusive, levar o Brasil a alguma corte internacional, como a Organização dos Estados Americanos.; Estima-se que, por ano, sejam realizados mais de 1 milhão de abortos no país, sendo que 250 mil internações ocorrem, no mesmo período, em decorrência de complicações da interrupção da gravidez. A advogada alega que, embora o juiz e o promotor do caso tenham afirmado que estavam apenas aplicando a lei, o magistrado poderia suspender os processos. ;A punição criminal não previne a ocorrência de novos abortos. Não é porque é crime que as mulheres deixam de fazer;, diz. Para ela, a legislação precisa ser revista, a exemplo do que ocorreu na Colômbia e no México, onde a prática foi descriminalizada. Galli entregou no ano passado ao ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, um documento recomendando a extinção de processos criminais contra mulheres que abortaram. A advogada diz que não se trata de decidir se o procedimento é certo ou errado, mas de definir se a mulher que interrompe a gravidez deve ou não ir para a cadeia. Ela cita uma enquete da Ipas na qual a maioria das pessoas se disse contra o aborto, embora conhecesse alguém que já o fez. Quando perguntados se achavam que aquela pessoa deveria ser presa, os entrevistados diziam que não. Pela primeira vez, o relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos aborda a questão das mulheres encarceradas. Elas representam apenas 6% do sistema prisional brasileiro, mas estão aumentando bastante: de 2001 a 2006, o número de presas cresceu 135%. A maioria é condenada por tráfico de drogas e está concentrada em São Paulo, que abriga 80% das presidiárias. De acordo com o relatório, o perfil é, majoritariamente, de mulheres jovens, negras e mães solteiras. A denúncia das pesquisadoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Luciana de Souza Ramos refere-se às condições as quais as presas são submetidas. Em São Paulo, 49% delas esperam mais de um ano para sair da delegacia e serem abrigadas em presídios, contra 36,9% dos homens. Além disso, sofrem discriminação em relação aos direitos reprodutivos. Poucas unidades prisionais femininas admitem visita íntima. ;A desigualdade entre gêneros se faz de forma perversa na privação sexual imposta às mulheres presas de maneira mais contundente e inflexível do que para os homens presos, seja sob a alegação de evitar a gravidez, seja pelo baixo índice de visitas dos companheiros;, alegam, no relatório. Escravas Zilda, boliviana de 22 anos, ilustra a história de mulheres migrantes que vêm para o Brasil tentar uma vida melhor e acabam em situação análoga à escravidão, trabalhando incessantemente em oficinas de costura de São Paulo. Ela foi atendida pelo Centro de Apoio ao Imigrante de São Paulo (Cami), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A mulher chegou ao país com o marido e três filhos, com a promessa de trabalho. ;No começo, moramos numa favela, mas depois de um tempo fomos levados para uma oficina de costura. Ficamos trancados lá uns oito meses. Trabalhávamos noite adentro e recebíamos uns R$ 50 por mês;, relatou Zilda à Cami. O relatório Direitos Humanos no Brasil denuncia esse e casos semelhantes. Para Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede Social e organizadora do relatório, o debate sobre os direitos da mulher tem avançado, mas o problema ainda é imenso. ;A discriminação continua grande. Enquanto não houver políticas estruturais, o cenário não vai se reverter;, lamenta.